Capítulo 24 - O artista

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Levou algum tempo até que todo aquele diversificado grupo de estrangeiros que atraía os olhares dos escrivães absortos em suas tarefas passasse pelos procedimentos necessários. Por fim, nos reunimos no hall, em que só restavam plantonistas insatisfeitos. Deveríamos nos apresentar ao nosso supervisor apenas no dia seguinte, então restava decidir o que faríamos com o tempo livre.

– Poderíamos ir para um bar – um rapaz loiro-arruivado sugeriu. Ou eu muito me enganava, ou era um dos irlandeses que tinha arranjado encrenca junto comigo no dia da festa no Komsomol.

– Não, meu chapa, eu estou todo quebrado – respondeu outro, também do setor inglês.

– Qual é, John, e desperdiçar uma oportunidade dessas? Vem com a gente. A noite é uma criança, e em Leningrado, uma criança arteira.

– Problema é que o John não é mais uma criança. Oitenta anos num corpo de vinte e quatro.

– Eu devo ter envelhecido uns quinze anos no inverno passado, mesmo. Poderia jurar que desenvolvi reumatismo. Não, pessoal, vão vocês. Eu realmente preciso de uma cama. Vou direto para a pensão.

Eu apenas escutava a discussão, com meus olhos colados no vidro fosco da porta de madeira da delegacia. No fim das contas, o grupo se dividiu em dois, e um deles partiu para explorar a vida noturna da capital do Norte, enquanto o outro, um pouco maior, iria direto para o hotelzinho que lhes tinham designado.

– Quer que a gente te acompanhe até sua pensão, Camarada Liza? Não é exatamente no caminho, eu acho, mas podemos fazer um pequeno desvio – ofereceu um dos colegas, pegando sua própria mala.

– Não, obrigada, camaradas. Podem deixar que eu chego lá inteira.

– Certeza?

Hesitei um instante. E se eu esperasse e esperasse ali, e Pavel não viesse? Eu não estava pretendendo dormir na delegacia, e tampouco achava que um daqueles policiais de faces não muito amigáveis toparia me levar em casa. Eu também não gostaria de pedir.

Abri a boca para responder, mas bem nesse momento, uma sombra alta se recortou no vidro fosco, fazendo meu coração – que não tem o menor senso de oportunidade e conveniência – dar uma cambalhota. A iluminação do poste na calçada revelou o contorno de uma boina, e a porta foi aberta, fazendo soar um sininho. A figura que entrou focou em mim seus olhos cinzentos e abriu um sorriso adorável, circundado pela barba ruiva.

Eu devolvi o sorriso.

– Sim. Podem ir tranquilos. Boa noite, nos vemos amanhã.

Meus colegas partiram, lançando olhares curiosos ao passar por Pavel, diante da nossa óbvia familiaridade prévia. Felizmente, eram quase todos do Setor Inglês, e discretos demais para fazer perguntas. O russo, por sua vez, logo se aproximou.

– Ei, desculpe te deixar esperando – ele pediu. – Saí do trabalho não faz muito, e só então vi que esqueci de trazer sua carta de casa. Dei-me conta que eu não sabia em qual delegacia você ia se registrar. Apostei nessa aqui, por ser a mais próxima da estação.

– Que bom que apostou certo. E eu não esperei tanto. Havia muitas propiskas para os funcionários analisarem, acabaram de nos liberar – eu respondi, baixando os olhos e arrumando uma mecha de cabelo atrás da orelha. Havia tanto tempo que não nos víamos para valer que eu não sabia mais como me comportar perto dele. Especialmente depois daquele desenho.

O desenho que ele me enviara, que eu carregava comigo o tempo todo no fundo da bolsa, que martelara em minha cabeça durante toda a viagem. Cheguei a tirá-lo algumas vezes e contemplá-lo, buscando saber se havia algum significado oculto naquelas linhas. Uma declaração de amor oculta, talvez? "Acalme-se, Maria, não exagere as coisas", eu tinha me aconselhado algumas vezes, voltando a guardar o desenho dentro de um livro. "Vá devagar". A sensata voz interna lograra colocar meus pensamentos no seu devido lugar, mas bem no fundo, havia uma pequena Lucia repetindo incessantemente seu descuidado "Casa com ele, amiga".

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now