Prólogo

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O verão está em seu auge, mas a noite é densa e fria desse lado de Minnesota. A estrada corta ao meio a sombria floresta, enquanto o vento forte e intermitente sopra os picos dos pinheiros para frente, como ondas invisíveis.

O homem no Ford azul que, corajosamente, seguia aquele caminho tortuoso, não parecia com medo apesar do cenário que o rodeia. A voz cheia de torpor de um Prince úmido, sob a sua chuva púrpura, invadia o carro e se alastrava para fora, escorregando para fora das janelas mal fechadas.

"Purple rain, purple rain..."

O Ford dobrou uma esquina, as luzes de International Falls brilham parcamente entre camadas sufocantes de galhos compridos.

"Purple rain, purple rain..."

Quanto mais se aproximava da cidade, mais escura a noite parecia, como se a única coisa que o separasse da completa escuridão fossem as luzes à quilômetros de distância.

"Purple rain, purple rain..."

Uma figura grande e grotesca estacionou no meio da estrada, a luz parca dos faróis iluminou-a no último segundo. É grande, muito, e negro, coberto de pelos. Garras afiadas, dentes pontudos, braços longos e pernas flexionadas. Olhos vermelhos... Sede e fome e medo estampados naquele focinho desfigurado.

"Honey, I know, I know
I know times are changing..."

O Ford deu uma guinada para o lado, dando um giro de noventa graus. O motorista girou o volante com toda a força, os dois pés no acelerador. O carro invadiu a floresta, mal conseguindo desviar das árvores no caminho. A pintura das laterais fora arrancada, os retrovisores sumiram num piscar de olhos. As janelas de trás já não possuem vidros, quilos de folhas formando um tapete sobre os bancos.

"It's time we all reach out."

Uma árvore praticamente brotou no meio do caminho. o Ford foi jogado para à direita, rumando uma descida íngreme e lamacenta.

O motorista pisou firme no freio.

Estava a salvo na beirada do lamaçal, o ar fugindo de seus pulmões como água numa cachoeira. O peito inflando e secando, ele iria explodir a qualquer momento, iria estourar e lançar o que sobrar pelos ares.

"For something new, that means you too."

O motorista olhou em volta. Olhos injetados, lábios trêmulos. O vento assobiando por entre os troncos, fazendo burburinhos em amontoados de folhas velhas.

Um tronco se partiu, o barulho pareceu atingir o âmago do motorista. Ele verificou as portas, as mãos trêmulas.

"You say you want a leader, but you can't seem to make up your mind."

A "Coisa" cambaleou entre as árvores. Estava perto do Ford, perto demais do Ford.

O motorista olhou por sobre o ombro, lentamente. Lá estava, encarando-o em silêncio. Grande e forte e assustador.

"I think you better close it", Prince disse por entre os auto falantes. Ele parecia convencido daquilo. "Acho melhor você desistir"... O motorista não queria desistir. Estava sussurrando sobre seus filhos esperando em casa, sobre sua mulher, sobre sua mãe que não estava em casa quando ele foi embora à duas horas, sobre seu pai está cada dia mais fraco, sobre o futuro e sobre as coisas que prometeu fazer e que não poderá cumprir se o que quer que seja aquilo lhe esmagar entre as fileiras pontudas de dentes.

A Coisa marchou suave porém rapidamente até a janela mais próxima ao motorista. Garras e dentes e olhos vermelhos... Fome e sede e não mais medo. Ele estava tão perto, o ar quente da respiração entrando pelas aberturas do vidro estilhaçado.

"And let me guide you to the..."

A coisa quebrou o que restou do vidro, a porta foi lançada ao alto. Uma mão peluda adentrou o Ford.

"... purple rain."

Aquelas unhas afundando na pele fina do pescoço do motorista, o grito, a muito preso, escapando entre os lábios sem cor ou vida, provocaram a obscuridade da noite à se partir.

"Purple rain, purple rain..."

O sangue escorria entre os dedos do motorista, suas roupas e o chão estavam engolfados num mar vermelho e quente.

"Purple rain, purple rain..."

Um braço fora arrancado, o homem sufocou em si mesmo. O ar... Tudo se fora, tudo escorregou para fora, tudo deixou de existir, lenta e dolorosamente.

"Purple rain, purple rain."

A chuva púrpura havia cessado, por hora, ela voltaria depois, mais forte, devastadora, uma tempestade.

Os jornais anunciaram o "acidente" muitas horas depois. A polícia anunciou um "mistério".

"Tranquem as portas", os mais velhos sussurram aos seus vizinhos. "Não saiam à noite", os pais alertavam seus filhos baladeiros. "Foi um assistente", os mais corajosos mentiam para eles mesmos e saiam. Alguns pararam de sair, outros, poucos, pararam de voltar.

Verão Taciturno (livro dois)Where stories live. Discover now