Capítulo 1

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O sol lambeu meu rosto e o cheiro da primavera fez os pelos, ao longo dos meus braços, se eriçarem

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O sol lambeu meu rosto e o cheiro da primavera fez os pelos, ao longo dos meus braços, se eriçarem.

Essa quantidade absurda de calor, banhando todo o estado de Minnesota, queimando-o como um maçarico supergigante, mataria qualquer vampiro.

Nunca presenciei a morte de um vampiro, não de verdade — nesse caso, os filmes não contam e os livros contam menos ainda. Mas, se eu fechar bem os olhos, posso sentir o farfalhar da pele se tornando negra e soltando do corpo em pedaços escarlate de cinzas. Posso sentir a podridão doce preencher o ar. Posso ouvir os gritos...

Seria uma cena para se presenciar de olhos e ouvidos lacrados, o estômago revirado e os dentes trincando.

Sir Thomas Browne disse: a morte é a cura de todas as doenças.

Mas, se bem sei, os vampiros já estão mortos. Do que eles teriam sido curados quando morreram para se tornar o que são agora? Da humanidade? Ou será que se curaram da própria morte?

— No que está pensando? — Billie envolveu meus ombros com seus braços bronzeados e musculosos, me chacoalhando no ritmo de uma música que soa apenas em sua cabeça.

Não posso dizer que estou pensando em um vampiro de quinta e na forma como o beijei antes de ele ter que partir. Isso seria informação de mais para a cabecinha do meu irmão.

— No inverno — respondi, não é uma total mentira. — Em como as ruas eram brancas e os dias pareciam estar em constante terminação. E, como os jornais e os sites dizem que nossos invernos são longos, sendo que eles acabam tão de pressa.

Billie me chacoalhou um pouco mais forte e então me soltou para olhar em meus olhos.

— Você por acaso andou tendo apagões outra vez? Não me diga que aquele idiota fez você usar drogas! — por mais grotesco que tenha soado, Billie não estava sério.

Fuzilei-o com os olhos, antes de responder com mais fuzilamentos:

— Claro que não, idiota. E eu não uso drogas.

Ele sorriu. Um desses sorrisos que crianças dão ao estarem aprontando.

— O inverno acabou quase no meio da primavera! — ele fez um “O” com a boca, para me mostrar o quão bombástica fora sua resposta. — Um inverno maior terá que utilizar o verão também. E você não quer me tirar o verão. Isso seria maldade — fez biquinho, como de fosse chorar. Eu sei bem que ele não vai. Billie nunca chora. — Já estamos sempre soterrados nessa neve toda na maior parte do ano. As borboletas nunca voam no inverno, os pássaros nunca cantam, as flores não desabrocham... Elas nem se quer existem!

Suspirei, concordando.

— O inverno é muito triste.

Mal sabe meu irmão, que há tantas coisas — e tantos seres — que dependem do inverno. Que eu, sua pequena fatia de Queijo, acabei por me tornar uma delas.

Dei um passo para longe de Billie, estendendo a mão para capturar uma pequena pena marrom que rodopiava no ar com a ajuda intermitente da brisa calorosa. Há quanto tempo não vejo uma pena, ou um pássaro inteiro? Bem, desde que a primavera renasceu das neves — literalmente —, eles cantarolavam sob os umbrais e em cima das casas, como loucos. Mas eu não os via.

— Urubus — meu irmão disse, agarrando a pena e despachando-a no ar, com um sopro barulhento. — Algo aqui perto está morrendo, ou já morreu.

Olhei para o céu ensolarado. Grandes nuvens cinzentas se formavam à nordeste.

— Um lobo? — perguntei, sentindo o estômago se revirando e reclamando. Dizendo que não há mais chances de aguentar outro lobo morto.

Ace matou um lobo no inverno. Ele estava me protegendo, o lobo estava prestes a arrancar um dos meus olhos! — eu não li a mente daquele lobo, mas, talvez, seja isso mesmo o que ele queria: meu olho, e todo o resto da minha face.

Um arrepio percorreu toda a extensão do meu tronco e depois subiu até as palmas das mãos, gélido como o inverno, gélido como... Ace.

Ace.

Aqueles lindos olhos escarlate, cobertos por uma espessa massa de cílios, nunca me assustaram — mesmo parecendo tão doentios. Seu rosto pálido e impecável, sempre tão triste. Como eu queria tê-lo outra vez, mesmo que para tê-lo precisasse conviver com suas tentativas de afastar meus dedos furtivos de seus pulsos frios.

— Vem, Queijo, vamos entrar. Papai vai queimar a carne outra vez — Billie puxou-me antes de eu poder reclamar.

O verão nem mesmo chegou e já não vejo a hora de vê-lo morrer sob camadas de quase dois metros de neve.

Neve.

Isso o traria de volta.

Traria os olhos cor de papoulas, o frio constante, cravado em sua pele, o ódio pela eternidade...

Ainda posso ouvir aquela última frase sussurrada antes de ele sumir, veloz, pela última tarde fria. Eu te amo. E ele vinha amando-me secretamente, tão secretamente que talvez nem o amor soubesse de sua própria existência.

Agora, mais que tudo, eu queria Ace, aqui, para me obrigar a ser quem eu era com ele. Essa Brie é mais uma piada mal contada; nada, aos olhos comuns dos habitantes de International Falls, alguma coisa aos olhos de Ace.

Toquei o bolso do meu shorts, sentindo o calor de uma lembrança queimar meus dedos.

Ace.

Ace.

Ace.

Tudo poderia se resumir a ele. No entanto, o momento se reduz à calor, carne queimada e vazios incompreensíveis. Nada disso é Ace, nada nisso me faz lembrar Ace.

Ace.

Quantas vezes será preciso lembrá-lo para tentar esquecê-lo?

Verão Taciturno (livro dois)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora