Capítulo 20

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Quando Billie teve a brilhante ideia de seguir um Demônio da Tasmânia noite a fora por uma cidade tomada por uma onda de violência, que, lindamente, apenas para completar toda a minha bastante calma — sim, tenho conhecimento sobre ironias — linha ...

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Quando Billie teve a brilhante ideia de seguir um Demônio da Tasmânia noite a fora por uma cidade tomada por uma onda de violência, que, lindamente, apenas para completar toda a minha bastante calma — sim, tenho conhecimento sobre ironias — linha de raciocínio, é adornada quase que completamente por uma maldita floresta muito boa para esconder coisas que pessoas, digamos, normais não deveriam saber sobre, a primeira coisa que eu disse claramente foi:

    — Nem que eu seja paga por isso!

    Billie iria de qualquer forma, estava disposto a descobrir a verdade sobre tudo — o que quer que "tudo" signifique.

    Todavia, eu, idiota como ninguém além de Billie seria, não deixei o meu — também maldito — irmão sair sozinho. É claro que eu tive que acompanhá-lo, já que alguém irá morrer, é bom que seja em grupo!

    Então, cá estamos nós, dois tolos com um corpo meio morto andando a passos muito largos por a mesma maldita floresta, após um tiroteio contra uma coisa-monstro, após descobrir que Kai é mesmo o assassino por trás de tudo, após uma discussão para saber se deveríamos levá-lo ou simplesmente deixá-lo ali para ser morto pela polícia quando ela soubesse o que aconteceu, após colocá-lo, nu, sobre o ombro de Billie e ver o sangue em um de seus braços deixar uma trilha sobre as folhas e então notar que esse sangue estragaria tudo e perceber, também muito tarde, que o que estamos fazendo irá estragar tudo para nós — para Billie e para mim.

    Billie jogou Kai sobre o sofá, nenhuma delicadeza, nenhuma vontade de deixá-lo ali. A casa de Nicholas parece ainda mais sombria hoje, como se a madeira das paredes finalmente pudesse pôr para fora tudo o que tem escutado todo esse tempo, sobre as mortes, sobre os demônios que hospeda.

    Não sei quantas vezes respirei fundo, tentando não explodir com cada um dos acontecimentos.

    Eu sozinha limpei o sangue que escorria pelos dedos de Kai, eu sozinha notei os ferimentos se fechando lentamente, eu sozinha o vesti e o cobri. Billie está furioso agora, batendo uma perna no assoalho com força sem sequer se dar conta do barulho que está fazendo.

    Kai se moveu sob a mão que pousei em sua testa. Embora cada uma das feridas se fechasse, a febre não baixava e o suor frio não parava de brotar em suas têmporas.

    — Kai quer dizer oceano em havaiano — ele disse, a voz frágil, o corpo colapsando entre uma palavra e outra. — Não acha que é um nome muito calmo para um assassino de margaridas?

    Ele fez uma pausa, os olhos voltados para algo muito além do telhado.    — Eu sempre pensei nisso.

    O tremular de seus dedos arrastavam a coberta um pouco suja com o sangue das suas feridas que não deixaram nem mesmo cicatrizes para trás. Eu o vi na floresta, pouco tempo  antes de ele arrancar a cabeça de um homem/policial com duas grandes mãos em garras. Aquilo que Kai se tornou não era nem homem nem monstro, mas uma mistura dos dois. As costas eram bem humanas, o grito que escapava entre seus dentes, monstro. Era como se um cientista maluco tivesse pego um homem, um lobo e um pesadelo, batido tudo em um liquidificador industrial e posto em um molde tortuoso. De qualquer forma, ele não me pareceu feliz ao terminar o trabalho sujo de eliminação. Quando a coisa-monstro voltou a ser Kai, tudo o que consegui ver foi apenas o garoto quebrado de sempre. Por mais medo que tenha sentido quando o vi arrastar os corpos — ou os pedaços dos corpos — e empilhá-los, assim que voltou a ser visivelmente humano, foi como entender todo o medo que ele carregava nos olhos.

    Billie o olhou como quem encara uma porta automática que não abre quando você está a um metro dela.

    — Então… — Billie respirou fundo, controlou a voz, engoliu em seco —  é isso o que eles são para você? Margaridas? — Mas a raiva em seus olhos tomou tudo. Ele se levantou, apontou um dedo para Kai, os traços de nosso pai cuspidos em sua cara enraivecida. — Deixa eu te contar uma novidade, seu monstro de merda: pessoas não nascem em árvores! Se você corta uma, não adianta colocar na água, as raízes não voltam a crescer!

    Kai tinha os olhos semiabertos, fundos e um sorriso taciturno voltado para algo muito além de Billie.

    — Essa é minha vida — respirou fundo, falho. — É assim que nascem os Demônios.

    — Que droga, Kai! Que droga de resposta é essa? É isso que você tem a dizer, essa é sua desculpa por todos aqueles homens? — a raiva escorria pelos olhos do meu irmão.

    — Billie, é melhor deixar isso para depois!

    — Não, Brie, ele precisa escutar. Você vai deixar essa coisa brincar com a vida das pessoas dessa forma? Não vai fazer nada? Vai acolher ele aqui como se fosse uma criança que quebrou um brinquedo sem querer? Que tipo de monstro você é para aceitar tudo assim, numa boa? São mortes! Não é como se ele tivesse jogado uma blusa que ainda servia fora, ele matou…

    — Billie!

    — O quê? Só por que ele é a porra de um diabo eu não posso falar assim com ele? Acha que eu não vou me defender? Acha que não sou capaz de enfiar a mão na cara dessa coisa?

    — Tudo bem — a voz de Kai era ainda mais baixa, ainda mais frágil, como se a morte estivesse bebericando de sua vida, acabando com ela pouco a pouco. — Eu sou mesmo tudo isso.

    Talvez esse seja o preço a pagar por ter tomado todas aquelas vidas, esse é o tal carma.

    — Como você é capaz de ter empatia por uma coisa dessas? — a voz de Billie, ao contrário de Kai, subia e subia e gritava e berrava.

    O dia amanhecia por trás das janelas, o cheiro do verão inundando a casa, assim como o cheiro do sangue, como o cheiro da indiferença.

    — O Ace é uma dessas coisas? — o cuidado ao pronunciar toda a pergunta, sobretudo "Ace", foi mais forte que o significado dela.

    Levantei.

    Kai olhava para mim entre os cílios ruivos. Ele não pareceu ver nada além de mim quando me olhou daquela maneira.

    — Está tudo bem, Kai. Sei que não teve escolha…

    — Me responda, Brie. Ele é ou não é uma dessas coisas?

    Respirei fundo, o ódio de Billie lhe escorrendo pelos cantos dos olhos em forma de lágrimas. Ele tentou afastá-las com os dedos confusos, mas elas voltavam e voltavam.

    — Eu poderia dizer que sim, Ace é uma dessas coisas-monstro que podem matar, morrer e reviver — e eu poderia mentir. Ace nunca me disse sobre ter matado alguém. Talvez, em algum ponto de sua vida, naqueles tempos em que ele não sabia o que era, tenha sido preciso. — Ace não se transforma como o Kai. Nem sei se ele teria tanta força assim. E eu já tentei falar sobre isso com você! Ele é um vampiro.

    — E essa coisa é o quê? — Billie apontou um dedo acusatório para Kai. Os lábios quase azuis se entreabriram.

    — Lobisomem, coisa-monstro, diabo. Ninguém realmente sabe o que somos — Kai segurou o lençol sobre o peito e sentou-se reclamando entre dentes. — Nem eu sei. Pode chamar como quiser.

    Billie socou uma parede e sentou-se, finalmente. Ambos os homens nessa ou dessa casa, são secretos, estranhos, monstruosidades sob uma carcaça humanoide. Eu, a única humana dentro e fora, estou começando a sentir medo de qualquer pequena coisa que acontece. Medo por dentro, empatia demasiada por fora. Um tipo de coisa-monstro diferente, mas segurando a mesma faca de dois gumes.

    — Kai — também sentei. Esperei que toda a atenção estivesse sobre mim e continuei —, nós não estamos desculpando você pelo o que vimos lá atrás, nem estou dizendo que estava certo ou errado, não importa se essa coisa te controla ou não. Entretanto, sabemos que há alguém por trás disso, alguém além de você. Se nos disser e prometer que não irá matar mais ninguém, podemos protegê-lo.

    — Você é mesmo muito maluca, Brie — Kai sorriu, a primeira coisa sem dor que ele fez hoje. — Cuida da casa de um demônio, ama outro demônio e agora está fazendo tratos com mais um.

    Billie encara a coisa toda acontecer sem dizer nada. Se for como eu, há uma guerra dentro dele.

    — Mas eu não posso entregar ninguém… Eles são a única coisa que eu tenho.

    — E o Nicholas? — disse com cuidado.

    — O perdi há muito tempo.

Verão Taciturno (livro dois)Where stories live. Discover now