Capítulo 19 - O atrasado

Start from the beginning
                                    

Silo foi o primeiro a me ver, e, recuperando parcialmente a compostura, acenou em minha direção:

– Essa é a Camarada Elizavieta. Não me peça para repetir o sobrenome. Liza, esse é o...

– Suarez, Arnaldo Suarez – interveio Astrakhanov, preenchendo o vácuo causado pela hesitação de Silo. Certo, então era assim que devíamos chamar Jaime... pois sem dúvida era ele que havia chegado, como anunciara o uruguaio.

– Muito prazer, Camarada Suarez – cumprimentei, estendo-lhe a mão para um aperto. Jaime pegou minha mão e beijou as costas dela, brejeiro, arrancando mais risadas dos rapazes quando eu fechei o cenho.

– O prazer é todo meu, Camarada Liza. Todo meu.

Puxei minha mão com uma careta e fui me sentar na cama mais afastada, de braços cruzados, ao lado de Astrakhanov. Evidentemente o gesto antiquado fora só para me espicaçar e entreter os outros. Eu que não ia me deixar abalar. Fiz cara de superioridade ao estilo da Major Bruntieva, e observei:

– Pode continuar o que estava fazendo, não quis interromper.

O colega não se fez de rogado. Curvando-se levemente, de modo que os quadris e o queixo ficavam adiantados com relação ao resto do corpo, ele acomodou sobre a boca uns restos de fio que tirou do bolso, simulando um bigode, e franziu o cenho numa carranca:

– Então, como eu dizia, prezados irmãos – ele começou a discursar, caprichando na dicção e volteando o dedo no ar com frequência, enquanto andava de um lado para o outro. Mal ele abriu a boca, e José Maria já começou a soltar risadinhas novamente – Quando cheguei à Amazônia... a este primor da natureza de uma terra que tem palmeiras onde canta o sabiá... quando cheguei à Amazônia, um autêntico filho de nossa Pátria, um índio!, se aproximou de mim. Alguns dos que me acompanhavam, imaturos, queriam espantar o pobre índio, mas eu disse NÃO! Não, deixem que ele fale. E eis que o índio me trazia um pedido.

Jaime, ou Suarez, fez uma pausa de efeito na melhor imitação de Plínio Salgado que eu já tinha visto na vida. Nós outros ocupantes do quarto o seguíamos atentamente com o olhar. Ele pigarreou, e prosseguiu:

– E o índio me disse, com lágrimas emocionadas a manchar-lhe a pintura de guerra "Bom homem branco!" – Suarez bradou, imitando Plínio imitando o suposto índio – "Bom homem branco, a nação guarani me incumbe de dizer que estamos orgulhosos por seus atos na defesa da nossa ancestralidade". Sim, meus senhores, o índio falou "ancestralidade"! – Jaime sublinhou em sua voz normal, com uma piscadela irônica.

А essa, até eu tive que rir.

– "O senhor é um paladino digno dos antigos guerreiros botocudos, e irá proteger nosso sagrado solo pindorama contra as pisadas destrutivas do materialismo histórico-dialético", concluiu o índio, e a essa altura eu já estava muito emocionado também, e fiquei mais ainda quando ele nos saudou... como acham que ele nos saudou, companheiros?

Silo e José Maria, já segurando a barriga dolorida de tanto rir, ergueram os braços direitos e gritaram novamente "Anauê! "

– Precisamente! Precisamente. Se não fossemos homens de extrema masculinidade, juro que teríamos chorado. Mas isso renovou nossas forças, e nos deu novo ânimo de lutar no terreno difícil de São Paulo, em que, desembarcando, encontramos meras 300 almas nobres para nos recepcionar, fazendo reboar o – e ele apontou para os rapazes, que berraram um último "Anauê! " – não muito longe da estação do Norte.

Findando seu relato, nosso colega se curvou, como no teatro, para ser saudado com as palmas dos espectadores.

– E assim, camaradas, encerram-se as aventuras do nosso colega Plínio Docinho, pelo menos o que ele aprontou enquanto eu ainda estava por lá. As trezentas almas nobres da estação do Norte não passavam de uns trinta camisas-verdes, segundo o relato mais confiável de um jornalista local. Para nossa alegria. Mas, exageros deles à parte, é uma verdade preocupante que as fileiras dos integralistas continuam aumentando por lá.

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now