Capítulo 18 - O Mea Culpa

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Era esse segundo tipo de saudade que eu experimentava naquele momento. Queria me dividir em duas, deixar uma versão de mim ali, e mandar a outra para casa.

(Talvez em três e enviar uma para Leningrado, também...)

Mas a ciência ainda não tinha avançado a ponto de tornar isso possível – se é que um dia avançaria – então só me restava prestar ouvidos à recomendação de Tabanov e socializar mais com meus colegas de setor. O almoço, que já estava na hora de acontecer, seria a oportunidade perfeita.

No refeitório, procurei de cara Silo e José Maria. Encontrei-os a um canto de uma das mesas, curvados, com ar conspiratório, conversando com um rapaz jovem de densos cabelos e ralo bigode negro. As cabeças dos três estavam abaixadas, e pareceram se sobressaltar quando os cumprimentei. O rapaz me lançou um olhar de desconfiança, enquanto eu me sentava ao lado de Silo, mas relaxou o rosto a uma frase de meu compatriota:

– Ela é brasileira, o assunto também lhe interessa.

– Que assunto? – eu questionei de imediato, imitando-os e baixando a cabeça, com risco dos cabelos mergulharem no prato de sopa.

– Jaime – José Maria explicou. – Parece que ele finalmente está vindo para cá. Pedro está voltando para o Uruguai essa semana, e teve que entrar em contato com seus líderes em Montevidéu. Parece que conseguiram despachar Jaime por lá, depois que a polícia o liberou.

– E o que tem isso de especial, para vocês estarem aqui de segredinho? – sussurrei de volta. Silo e José Maria se entreolharam, como se pela primeira vez pensassem no assunto. Foi o uruguaio quem me respondeu:

No lo supimos por los canales oficiales, así que es mejor ser cauteloso.

Então eu lembrei que um dos motivos para eu ainda não ter me entrosado muito com o pessoal do Setor Latino-americano era que o espanhol me dava uma vontade incontrolável de rir. Cobri a boca com a mão num aperto forte a fim de conter os músculos da face, assumindo uma atitude concentrada para disfarçar. Quando consegui me dominar, observei:

– Bom, vocês estão chamando muito mais atenção aqui abaixados do que se estivessem apenas conversando em voz baixa enquanto comiam – encolhi os ombros, voltando a atenção para meu próprio prato. – Chamaram a minha. Daqui a pouco aparece alguém para perguntar qual é o segredinho.

O tal Pedro pareceu relutar em admitir que eu tinha razão, mas logo ele e meus colegas se endireitaram, e ele continuou seu relato, a que eu atentei, traduzindo tudo mentalmente para português, a fim de evitar risadas inoportunas.

– ...ao que parece as autoridades do seu país estão alucinadas desde que confirmaram que um figurão escapou para cá. Intensificaram a fiscalização, e até lá no nosso partido andaram alguns provocadores perguntando por ele. Foi assim que foram descobertos, aliás.

"Provocadores" eram como chamávamos os agentes infiltrados, especialmente policiais. O nome tinha a ver com o modo com o modus operandi preferido deles: provocar-nos para que soltássemos alguma informação ou nos incriminássemos de outra maneira.

– Que figurão? – perguntou Silo, e percebi que seu semblante empalidecera um grau.

– Aquele camarada que cruzou o país com uma tropa. Prestes, eu acho. Um que andou morando entre nós também – murmurou o uruguaio.

Silo franziu ainda mais as sobrancelhas. Observando a reação dele, finalmente me ocorreu de onde seu nome me era conhecido: das reportagens sobre a Coluna Prestes, que eu lia avidamente nos tempos de escola. Claro! Ele era mais velho que a maioria dos colegas, militar... devia ter participado.

Dias VermelhosDonde viven las historias. Descúbrelo ahora