Capítulo 85

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Pouco tempo depois, estamos no interior do centro de treinamento de Kali.

O lugar parece assombrado. Kali liga apenas algumas luzes, e elas surgem bruxuleantes, fracas e amareladas. O ambiente está claro, mas não se ilumina. Os cantos das paredes ficam no escuro. De relance vejo o tubo metálico com que Sybil costumava punir a garota, agora subjugado e esquecido.

Nem mesmo parece que ela esteve aqui há tão pouco tempo.

— Ceres ficou para trás. — Eu digo.

Kali anda pelo lugar, abrindo e fechando gavetas de bancadas, abrindo portas, testando algumas telas. Como se para se certificar de que qualquer traço de sua existência tenha sido apagado. Ela para sobre o tatame e levanta o olhar para as câmeras instaladas nos cantos do teto. Seu olhar não diz nada, mas ela aperta as mãos uma na outra.

Ela sabia das câmeras.

Sabia o tempo inteiro.

— Sim — ela responde. — Ceres disse que o servidor é o único lugar em que se sente protegida. Que está preparada para o que quer que venha a acontecer com ela e que, de qualquer maneira, já fez muitas outras coisas proibidas. Eu sempre disse a ela que a nectarina não ia ajudar em nada.

Ela balança a cabeça, talvez lembrando-se do dia em que se drogou, também.

— Ela disse que vai ficar bem — diz. — Disse que eles não conseguirão tirá-la do servidor e, se conseguirem, ela vai arranjar um novo. Porque conhece e sabe quebrar todos os códigos da Teia. Ela vai saber explorar ao máximo as brechas que encontrou antes que essas falhas de segurança sejam corrigidas. De qualquer forma, só podemos estar aqui porque ela reativou uma parte do servidor como isca. Com certeza vão atrás dela e não virão até aqui. Não agora.

Sinto minha cabeça girar de leve por conta das drogas e do braço amputado, e decido me sentar no chão – ainda que não saiba se vou conseguir levantar, depois.

Olho em volta. Kali guiou o furgão até aqui, e deixou Blair e Ellie no interior dele. Disse que eles tinham o que discutir entre si.

— Ellie e Lenina eram namoradas, da última vez em que eu as vi. — Comento.

A assassina fica calada por algum tempo, virada de costas para mim. Vejo que se crispam seus punhos, mas ela subitamente vai até seu armário e abre a porta. O console que o trancava está desativado, e a trava é completamente inútil.

— Sim. Elas eram namoradas.

— Você também foi namorada de Lenina.

Pela segunda vez ela fica parada. Agora, com as mãos dentro do armário, enquanto procura por alguma coisa.

— Sim. Eu namorei com ela por algum tempo — diz. — Mas não durou. Ela me traiu de todas as maneiras que poderia e, mesmo quando já não éramos mais aliadas, me traiu outra vez. E você me traiu, também.

Sinto algo dentro de mim se torcendo.

— Como convenceu Ellie a ajudá-la? — Pergunto.

— Com a aliança — diz. — Como ela continuou sendo uma aliada minha, mesmo após a atualização, eu consegui convencê-la de que era através disso que deveria cumprir com nossa relação. Eu comecei com pouca coisa. Queria ajuda para conseguir alguns itens. Ela me ajudou a comprar a faca. Me ajudou a conseguir injeções, curativos. Eu não disse a ela o que estávamos fazendo antes de ser impossível a ela fugir do que havia feito.

Eu pisco algumas vezes, tentando desembaçar minha visão.

— E quanto a Lenina? — Pergunto. — Ela disse a você para não falar a respeito dela.

Deuses e FerasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora