Capítulo 32

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Uma semana depois. Mercado político.


Outra vez Lenina me avisa, através do display, que tem uma nova informação para mim. Então novamente subo na moto e vou ao mercado político, onde passo o braço pelo console na cabine de vidro e sou analisado pelo detector. Quando chego ao interior, entretanto, Lenina está junto da entrada.

— Achei que ia encontrar você em uma dessas cabines.

Ela dá de ombros.

— Essas cabines servem para proteger os mercadores, principalmente quando se trata de alguma coisa extremamente sigilosa ou perigosa — diz ela, arrumando os cabelos ondulados. — O que estamos fazendo, eu e você, é bem diferente. Tem algumas salas privativas, do outro lado do mercado, que podemos usar. — Ela diz, apontando para um lado.

Ela se vira e anda naquela direção, seus quadris indo de um lado para o outro conforme ela caminha. Passamos por um arco aberto na parede e andamos por um corredor amplo, bem iluminado, até chegar em uma área diferente do lugar. Aqui, apesar de haver portas de vidro, as paredes são opacas. Continua havendo uma mesa entre os dois lados, mas não há uma barreira material entre eles.

A porta se abre quando Lenina se aproxima, e ela acena com a mão para dentro.

Sentamos um em cada lado, como se a barreira de vidro ainda estivesse aqui.

— O que você tem a dizer? — Pergunto.

Lenina sorri um pouco e, então, bate duas vezes com a unha do indicador sobre a mesa, indicando-a. Olho para ela e vejo um console. Passo o braço por ele e, trezentos e cinquenta créditos mais pobre, volto a olhar para a garota.

O sorriso dela cresce em seu rosto.

— Certo. — Ela diz.

Nos olhamos por algum tempo, enquanto eu aguardo que ela fale.

— Eu entrei em contato com a hacker da Kali — diz ela. — Ceres.

— Sim, eu a conheço, como você sabe — resmungo. — Foi ela quem me ajudou a tirar a Kali da CMT.

Ela concorda.

— Exato. Acho que talvez você já tenha percebido a minha estratégia. Vou entrar em contato com todos os quatro aliados dela para descobrir o que ela compartilhou com eles e o que, consequentemente, posso compartilhar com você a partir disso — diz a garota. — Duvido que haja alguma maneira melhor de descobrir os segredos de Kali.

Uma pergunta vem à minha mente.

— O que você era, dela, antes da atualização?

Lenina fecha o rosto, os olhos ficam fundos.

— Como assim?

— Você disse que era amiga de Kali antes da atualização — digo. — Você e Ellie. Isso quer dizer que vocês eram aliadas, não?

Ela apenas me encara por alguns segundos, e quase posso ver seus pensamentos se entrelaçando dentro de sua cabeça. Aparentemente há muita coisa que ela decidiu não me contar por ora, a respeito de Kali e de si mesma.

— Sim. Éramos aliadas. — Ela finalmente diz.

— Houve alguma razão para que você deixasse de estar na galeria de alianças dela?

A garota cruza os braços sobre o peito.

— Eu não consigo entender como isso possa ser relevante na nossa negociação — diz. — Pelo que me lembro, estou vendendo informações a respeito de Kali, não de mim. Se quiser saber a meu respeito, deve procurar outro difamador.

Me inclino um pouco à frente.

— Se não é mais aliada dela, o que é, agora?

Sua face se contorce em o que poderia ser uma tentativa de mascarar raiva, e ela descruza os braços, pondo-os sobre a mesa.

— Isso não importa. O que importa é que eu fui aliada dela. Ninguém nunca foi tão próximo dela quanto eu. E, por essa razão, ninguém é mais qualificado do que eu para falar a respeito dela — Lenina fala, olhando nos meus olhos, incisiva. — Foi por isso que você me procurou para o serviço, não foi?

Coço o queixo.

— Tudo bem. — Digo.

Ela parece relaxar um pouco, e volta a mexer nos cabelos. Penteia-os com os dedos.

— Você por acaso usou nectarina para comprar as informações de Ceres?

— Não interessa. — Ela diz.

Mas, dessa vez, sua voz é mais doce e musical do que antes.

— Bem, o que descobriu, então?

— Não o motivo, mas o que motivou Kali a fazer o que fez — responde ela, prontamente, as palavras na ponta da língua. — O que a levou a matar Morfeu antes do tempo, antes que você fosse capaz de roubar a faca dele.

Faço um gesto com a cabeça para que ela continue.

— Foi Ceres quem informou a Kali tudo que ela precisava para encontrar Morfeu — diz Lenina. — Por uma questão lógica, os fatalistas só recebem os dados completos e posição geográfica de seus alvos quando eles estão prontos para ter o arco fechado. Kali jamais seria capaz de encontrar Morfeu sem a ajuda de um hacker, e foi Ceres quem o encontrou para ela — Lenina para de mexer nos cabelos e põe as duas mãos abertas sobre a mesa, a primeira mesa analógica que vejo em muito tempo. — Ceres disse que Kali simplesmente não conseguiu esperar o momento certo para matá-lo.

— Eu não consigo entender o porquê. — Digo, inconformado.

O rosto da difamadora se endurece outra vez.

— Aparentemente, Kali não queria que ele estivesse pronto. Ela queria matá-lo antes do tempo.

— Isso não faz nenhum sentido — resmungo. — Ela estaria conscientemente indo contra a Teia e as linhas-guia da própria casta. Assim como contra as linhas-guias gerais, também.

— Exato.

Ficamos em silêncio por alguns instantes, e eu fico deglutindo a informação.

— Ceres disse que a intenção de Kali era, antes de qualquer outra coisa, se vingar.

— Se vingar? De quê?

Ela dá de ombros.

— Ainda preciso descobrir o que foi que aconteceu entre ela e Morfeu — diz. — Mas pretendo fazê-lo em breve.

A mercadora se inclina um pouco sobre a mesa, chegando mais perto de mim. Eu acabo fazendo o mesmo.

— Ceres me disse mais uma coisa.

— O quê?

— Ela me disse que Kali saiu do servidor cheia de fúria, assim que conseguiu a localização de Morfeu. Ela disse que Kali tinha saído para se vingar. Não para fechar um arco, mas para assassinar — diz Lenina, e seus olhos vão se afundando cada vez mais em seu rosto, conforme ela fala. — Ceres disse que Kali tinha uma verdadeira razão para quebrar o fluxo, ou, pelo menos, assim imaginava. Disse que não apenas Morfeu era alvo de Kali...

Sua boca mal se move, agora.

— Como Kali era de Morfeu.

Deuses e FerasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora