Dois dias depois. Mercado Político.
Aguardei algum tempo antes de procurar Lenina. Depois da descoberta de que sou um alvo de Kali, toda a Dínamo começou a parecer mais agitada e perigosa, mais fria e cinzenta. Ontem gastei um dia inteiro com perambulações e tentativas de encontrar uma solução.
Sem sucesso.
Hoje, decidi ir até Lenina.
Assim que a encontro, dentro do mercado político, ela segura minha mão com firmeza.
— Eu precisava falar com você — digo, sem saber exatamente como começar. — Preciso pagar?
Estamos novamente na mesma sala privativa com porta de vidro. A garota está mais quieta do que o normal. Não dá nenhum sorriso, também. Pela primeira vez, prendeu seus cabelos, mostrando seu rosto com mais clareza.
— Não. Não precisa.
Meu braço esquerdo já estava próximo do console, mas então coloco-o sobre a mesa outra vez.
— O que houve?
— Eu encontrei a Kali na feira, no mesmo dia em que você me contou que é alvo dela — digo, sério. Agora, a investigação que eu e ela empreendemos parece irrelevante, ridícula. — Nós... conversamos. Eu queria saber o porquê de não podermos nos parear.
— Essa foi sempre a sua maior preocupação, não? — Ela quase me interrompe. Seus olhos parecem verdadeiros, mas sua boca se torce um pouco quando ela fala. — O fato de vocês serem pares. Não o de ela ser seu alvo.
Eu aguardo um pouco, sem saber o que responder.
— Isso não importa — digo. A garota torce a boca outra vez, mas eu ignoro. — Eu falei com ela. E ela me disse que eu também sou alvo dela.
Lenina fica calada, seus olhos mirando a mesa, sem me olhar.
Estendo a mão e tento pegar a dela, mas a garota a recolhe para junto de seu colo.
Deixo minha mão sobre o tampo de vidro, e a examino.
— Você sabia disso? — Pergunto.
A mercadora permanece em silêncio.
Recolho a mão.
— Você sabia disso. — Afirmo.
— Fazia parte da investigação — diz ela, em voz baixa, ainda sem me olhar. — Eu precisava descobrir quem eram os alvos dela. E eu vi, sim, que você é um deles. Mas também vi que eu sou.
— Porque não me disse? — Pergunto, sentindo minha voz se alterando. — Eu paguei trezentos e cinquenta créditos a cada informação que você conseguia para mim, mas o que eu queria descobrir foi justamente o que você não me disse!
— Eu não disse porque não me era permitido fazer isso. — Diz ela.
Crispo meus punhos e os coloco debaixo da mesa para que ela não veja a raiva que concentro neles.
— O que você quer dizer com isso?
— Estava em meu display, tudo isso — responde. — Eu sabia tudo que deveria dizer a você e, também, o que não deveria. Os difamadores também têm seus relatórios de bens, mas eles funcionam de uma maneira diferente. Temos relatórios de dados, de informações, de conhecimentos. E você não deveria saber que tem uma relação não apenas de pareamento mas, também, de casta, com a Kali. Eu não podia dizer a você.
Cruzo os braços. Como um espelho, ela faz o mesmo.
— Kali me disse que você não falou com nenhum de seus aliados.
Lenina continua olhando para a mesa.
— Ela disse que você sabia tudo que me disse. Que você sabia a respeito de Morfeu, da rebeldia dela, de que ele a estuprou, do colar, de tudo — eu digo, sério. — E também disse que foi você quem a mandou para a CMT.
A garota finalmente levanta os olhos para mim.
— O que ela disse?
— Disse que contou a você que havia sido estuprada por Morfeu, que iria matá-lo, que iria se vingar — eu digo, encarando-a. — E disse, também, que você revelou aos mantenedores que isso iria acontecer. Que você a traiu, e que essa é a razão pela qual ela se afastou de você e de Ellie.
Ela descruza os braços e, finalmente, dá um vislumbre de sorriso.
— Você não pode me julgar, Harlan — diz. — O que eu faço é apenas cumprir com meu display. Faço apenas o que todas as outras pessoas também fazem.
— Trair sua melhor amiga. Era isso que estava em seu display? — Pergunto.
Lenina nada diz.
— O que Kali fez ao matar Morfeu não estava no display dela, nem no de ninguém — eu falo, enquanto me levanto. — Não estava em seu display que deveria delatá-la para a Teia, para a CMT. Você fez isso porque quis. Traiu sua melhor amiga.
Paro antes de abrir a porta de vidro.
— Não tenho mais negócios a fazer com você. — Digo.
E saio.
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Deuses e Feras
Science FictionEm um futuro distópico, a Internet transformou-se em um instrumento de governo. Os países e nações desapareceram para dar lugar a um Estado virtual que governa a tudo e a todos por meio de dispositivos implantados nos braços dos cidadãos. Cada um de...