Capítulo 13

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Noite, um pouco mais tarde. Dormitório.


Durante todo o caminho até o subúrbio fiquei incomodado por conta do sangue que vertia em quantidade do ferimento que Kali abriu na minha cabeça. Na estação de trem do subúrbio, em um dos banheiros públicos, encontrei algumas toalhas de papel descartáveis, e usei-as para tentar estancar o sangue. O esforço foi válido, embora meus ombros tenham ficado avermelhados.

— O que aconteceu? — Pergunta Jayden, assim que me aproximo de minha cama no dormitório. Ele cutuca a própria cabeça.

— Acho que uma pergunta mais relevante seria quem aconteceu. — Diz Mael, seu olhar me avaliando.

Dou de ombros, incomodado com o que ele disse.

— Foi a Kali? — Jayden pula de seu beliche e vem até mim. Tira as toalhas descartáveis de meu couro cabeludo e arranca, nisso, o pouco sangue que coagulou. Faço uma careta de dor.

Eu o afasto de mim e volto a colocar o papel na cabeça.

— Eu tentei roubar ela hoje, depois da cerimônia de inserção — resmungo. — Achei que a feira de mercadores seria uma boa oportunidade pra fazer isso, principalmente porque é difícil de ser localizado no meio de tanta gente. Me escondi no meio das barracas e ataquei ela. Mas, quando fui realmente roubar o colar... não estava com ela. Perguntei como o havia roubado e onde ele estava. E ela disse que o colar continua sendo meu.

— O que faz muito sentido, considerando o fato de que ela roubar é ilegal, e o roubo desse colar de você sempre esteve fora de qualquer display, pelo que entendi — diz Mael. — Tecnicamente, ele ainda é seu, sim.

— Tanto que os mantenedores sempre exigem ele a você nos dias de repasse. — Admite Jayden.

Solto um suspiro.

— Quer dizer que eu estava errado desde o começo?

Os dois dão de ombros de forma sincronizada.

— O que devo roubar dela, então? — Pergunto, confuso. A batida na cabeça ainda parece turvar meus pensamentos o bastante para que o enigma pareça mais difícil do que realmente é. — É impossível que eu tenha sido designado para roubar algo que ainda está no relatório de bens de outra pessoa, certo? Principalmente se essa pessoa for eu mesmo.

Jayden fica me encarando por alguns instantes. Depois olha para Mael, como que exigindo uma resposta.

— Talvez o que você deve roubar seja algo diferente do comum — diz ele, a voz lenta, como que testando as palavras. — Eu conheço muito pouco do ofício dos salteadores. Até que ponto vocês roubam objetos físicos, bens materiais?

Tanto eu quanto meu amigo lançamos a ele um olhar de descrença.

Tudo o que roubamos são bens materiais. Sempre somos designados a roubar os bens materiais mais valiosos de nossos alvos. É o padrão. — Diz Jayden.

— E se vocês precisassem roubar uma ideia?

— Só se elas estiverem guardadas em algum recipiente físico — retruca Jayden. — Como o HD que preciso roubar de uma artífice no centro. Todas as ideias dela estão nesse HD, e é o bem mais valioso que ela possui.

— Pra roubar ideias e bens imateriais, existem os difamadores. Você deveria saber disso. — Estreito os olhos na direção dele.

Ele, em retribuição, estreita os seus para mim.

Mael se apruma sentado em sua cama.

— Vocês estão entendendo errado, estão limitando seus pensamentos — diz. — Talvez a questão seja muito mais profunda do que vocês imaginam. Quem sabe o colar seja apenas uma desculpa para que você se aproxime dela, e o que deve roubar seja algo muito mais subjetivo. Talvez tenha de roubá-la de si mesma.

Eu e Jayden nos entreolhamos.

— Isso é impossível — diz meu amigo ao namorado. — Para isso, ela precisaria pertencer a alguém e, ao contrário...

— Todos pertencemos à Teia. — Eu completo sua frase.

Ficamos em silêncio por alguns instantes. Então Jayden volta à sua beliche – o andar de baixo, já que Mael dorme no de cima e permanece lá durante toda a conversa – e se tapa com o lençol branco quase transparente com que devemos nos cobrir durante a noite.

Tiro as toalhas descartáveis de meu couro cabeludo e solto um som fraco de dor.

— Quer ir ao Hospital Geral? — Pergunta Mael.

— Duvido que eu passaria na seleção de cura com algo tão pequeno assim.

Assim que termino a frase, percebo a ironia na pergunta dele.

— Vá tomar um banho, Harlan — sugere Jayden. — Amanhã é um novo dia. Você ainda pode ir atrás dos seus outros alvos, certo?

— Sim, mas eu não deixo de ser um curinga.

Pego uma das toalhas brancas disponíveis em um dos armários coletivos e tomo banho no banheiro coletivo. A água que desce pelo ralo tem uma cor vermelha fraca, e eu massageio a cabeça com cuidado, mas a dor se limita ao ferimento. Quando termino o banho, arranjo mais algumas toalhas descartáveis e improviso um curativo com elas, para a noite. Ignoro sumariamente os arranhões e hematomas que a luta com Kali me proporcionou.

Quando deito em minha cama, Mael e Jayden já estão dormindo, virados para o outro lado.

Enquanto encaro o fundo dacama acima de mim, a impossível ideia de Mael parece muito mais possível do queantes.

Deuses e FerasWhere stories live. Discover now