Capítulo 35

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Noite. Depósito de mercadores.


A noite fria não me consola. Enquanto os outros mercadores saem do depósito para tratar de seus alvos, ou para ir a seus dormitórios, eu permaneço junto da minha mesa, sentado em uma cadeira alta. Na tela do tampo de vidro há apenas duas janelas abertas: as duas câmeras restantes no centro de treinamento de meu alvo.

A garota já terminou o treino e, felizmente, Sybil não a puniu, hoje. Não houve motivo. Kali praticou todos os seus golpes e sequências com precisão milimétrica, cirúrgica. Seus olhos aquilinos se focam no que ela quer acertar e ela não parece ser capaz de pensar em mais nada. Sybil, de braços cruzados ao lado dela durante toda a tarde, apenas aprecia em silêncio os movimentos da fatalista.

Mas, agora, ela está sozinha.

Ela sai do tatame no centro e desliga algumas das luzes.

A garota vai até os armários em um dos cantos e abre uma das portas. Lá de dentro tira algumas roupas, que ela troca no mesmo lugar em que está. Parece que qualquer outra porção de seu corpo que não a cicatriz em sua barriga não me chama atenção, agora. A marca de violência em seu abdômen é clara; sua presença, inegável. O que Lenina me revelou é verdade.

Do pescoço da garota, pousando sobre seu peito, o colar com pingente de aranha.

Ela põe uma blusa e guarda o pingente dentro dela pela gola, a corrente desaparecendo, também.

O que eu faria, se estivesse no lugar dela? Se eu fosse do sexo feminino e fosse abusado sexualmente em um beco escuro por alguém que não conheço, de pés e mãos amarrados e um corte profundo aberto na barriga... o que eu faria?

Não aceitaria o destino, o fatal.

Provavelmente faria o mesmo que ela fez.

Mataria o responsável.

Ainda que isso desconstruísse a Teia, ainda que isso me levasse para a CMT e ocasionasse uma atualização que influenciasse a cidade inteira e todos os seus habitantes. Ainda assim...

— Kali.

Ela levanta os olhos na direção da entrada. Leon está lá, mais uma vez.

Aumento um pouco o volume, tocando na tela, e afundo um pouco mais os fones nas orelhas.

— Leon. — Ela também o cumprimenta com o nome.

Os dois se olham por alguns instantes. Ela enrola um par de faixas vermelhas e joga dentro do armário.

— Você tem aparecido aqui com mais frequência — diz ela. — Está me espionando?

Ele dá uma risada.

— Espionando? Eu não. — Ele diz.

Kali balança a cabeça de leve.

— Eu mesma tirei todas as câmeras do centro de treinamento. — Resmunga, e percebo que estão falando de mim.

— Isso não quer dizer nada. O garoto pode ser mais inteligente do que parece e ainda estar nos espionando — diz o velho, aproximando-se passo a passo, lentamente. — Quero dizer, espionando você. Porque razão ele iria querer olhar para um velho caquético como eu se pode vigiar alguém como você?

A garota levanta uma das sobrancelhas.

— O que quer dizer com isso?

— Quero dizer que você tem muitos mais atributos do que eu para conquistar um garoto — ele dá de ombros. — Melhor não entrar em detalhes. Talvez ele realmente esteja nos ouvindo.

Ela sibila.

— Acho pouco provável. Ele está gastando todo o seu tempo com a Lenina.

Leon dá um sorriso muito rápido, mas não rápido o bastante para impedir a fatalista de vê-lo.

— Bem, e qual é o problema nisso?

Kali para de guardar suas coisas para olhá-lo. Seu nariz se franze.

A Lenina. Você conhece a Lenina — diz, simplesmente. — E eu fico pensando se tomei a decisão certa. Se, no final das contas, não devia ter deixado que as coisas acontecessem conforme fosse necessário. Talvez eu tenha simplesmente me jogado ainda mais para o fundo do poço.

— Isso já não importa mais, agora, não é? — Pergunta o velho. — Está feito.

Kali olha para o chão, pensativa.

— Talvez.

Ele concorda com a cabeça e se aproxima dela, pondo a mão em seu ombro.

A fatalista segura a corrente de ouro com as duas mãos, parecendo prestes a tirá-la do pescoço. Então, para. Dá uma olhada para dentro do armário e solta a corrente outra vez. Mantém a joia consigo. Fecha o armário e a porta se tranca sozinha.

— Vamos, garota — diz Leon. — Podemos conversar em outro lugar. Aqui, as paredes têm ouvidos.

— Não só aqui. — Ela diz, eeles saem.

Deuses e FerasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora