Capítulo 62

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Tarde. Depósito de mercadores.


Jayden se aproxima de sua mesa com tampo de vidro e para no meio do caminho, olhando para mim.

— Harlan — ele diz, e desvia seu caminho, vindo até mim. — Como você está?

Balanço a cabeça de leve, apoiado na mesa. Mostro a ele meu pé.

— Preciso ir a um posto avançado de curandeiros. — Digo.

— O que aconteceu?

— Eu e Kali fomos atrás da primeira possível imune em nossa lista — digo. — E, na fuga, ela me deixou para trás. Nós saltamos para um terraço e eu a perdi de vista. Ela não me esperou. Na queda, eu torci o tornozelo.

Ele cruza os braços.

— E ela era uma imune?

— Não.

Ele dá um suspiro e me examina.

— Tem algum problema com você e a sua garota?

Franzo os lábios e a testa.

— Bem... sim — digo. — Nós dois nos pareamos.

— E então? — Jayden não sorri. Ainda que eu me parear com meu único par possa ser considerado algo bom, minha expressão, com toda certeza, mostra que algo está errado.

— Não foi o que eu imaginei que seria — digo. — Nem de longe. Ainda que a Kali seja o que e quem ela é, a sensação foi de... estranheza. Como se houvesse alguma coisa fora de lugar, alguma coisa mecânica acontecendo. Isso já aconteceu com você, com algum de seus pares?

Jayden balança a cabeça negativamente.

— Mas o que você esperava, Harlan? — Ele diz. — O pareamento não é amor.

— Eu sei, eu sei — respondo, a voz baixa. — Mas, por alguma razão, eu imaginava que... que por sermos pares únicos, um do outro, as coisas seriam diferentes. Mas não foram. Ela nem ao menos parecia estar comigo. Parecia que não estávamos nos pareando. Eu me senti sozinho. Me senti como se não estivesse lá, e como se ela também não estivesse lá. É quase como se nem sequer tivesse acontecido.

Eu cruzo os braços e tento transferir o peso de um pé para o outro, mas o direito dói demais.

— E eu também falei com Lenina.

— Lenina? — Pergunta ele. — A mercadora que vendeu as informações de Kali para você?

— Sim. Ela disse que o pareamento é falho — respondo. — E eu não tenho certeza, mas acho que, depois de me parear com a Kali, talvez eu concorde. Talvez eu esteja lutando uma batalha já perdida. Quem sabe tudo o que ela quer é me arrastar para mais perto do meu destino. Para mais perto do fechamento do meu arco. Talvez o que eu imaginava sentir por ela fosse, na verdade, apenas um cálculo matemático.

Jayden parece não saber o que dizer.

— Lenina disse que eu deveria roubá-la. Antes que ela me roube de mim.

As portas do depósito se abrem. O tradicional grupo de mantenedores passa por elas.

— Hoje é dia de repasse. — Diz meu amigo.

— Eu sei.

— E a única coisa que você ainda precisa entregar a eles é o colar. Classe 1.

Concordo com a cabeça.

Os mantenedores passam de mesa em mesa, e todos os salteadores têm, pelo menos, um item para entregar a eles. Aguardo, ouvindo as batidas surdas de meu coração dentro de minhas orelhas. Quando eles finalmente chegam até mim, levanto o olhar. Continuam sendo os mesmos três mantenedores. Estendo o braço e a grade vermelha do escâner passa por ele.

— Harlan Montag.

Faço um sinal afirmativo.

— Aparentemente você tem apenas mais um alvo, e trata-se de sua última conquista. — Diz a mantenedora à frente, analisando meus dados no tablet.

— Sim. — Digo.

— Foi-nos informado que você recebeu um prazo limite para entregar seu último item roubado — ela diz, sem olhar para mim. — E este prazo estoura muito em breve. Aparentemente, faltam apenas duas semanas. Isto confere com as informações previamente fornecidas a você?

— Sim. O prazo era de três meses, e eu ainda não consegui cumprir com o acordo.

— Certo.

Os três permanecem onde estão por alguns momentos.

A mulher verifica alguma coisa no tablet.

— Também foi-nos informado que houve uma pequena mudança nos parâmetros referentes a seu último alvo — diz ela. — Uma mudança de prioridades. O artefato que deve ser roubado de Kali Assange, antes identificado com o rótulo de Classe 1, tornou-se, agora, Classe 3.

Classe 3. Não precisa ser repassado à Teia, nem revendido.

O colar pode ser meu.

— Qual a razão para a mudança? — Pergunto.

— Detalhes técnicos não nos são informados.

Ela entrega o tablet para o homem à sua esquerda.

— Para que a mudança de prioridade se conclua, entretanto, o artefato deve ser roubado com prioridade máxima — diz a mulher. — Isso significa que seu prazo agora já não é mais o mesmo, e as duas semanas de que você dispunha foram reduzidas.

— Quanto tempo eu tenho?

O homem verifica no tablet.

— Setenta e duas horas a partir deste momento.

Meu display dá um sinal sonoro.

Olho para ele. Um pequeno contador apresenta o tempo restante.

Faço outro sinal com a cabeça, e os mantenedores continuam seu caminho. Vão à mesa de Jayden, que entrega tudo o que roubou nos últimos dias. Quando eles se afastam, meu amigo vira o rosto em minha direção.

— Setenta e duas horas. — Diz.

— É. — É tudo que eu digo.

— Ainda que você não queira, é obrigado a roubar a sua garota. — Diz Jayden.

Quando ele fala, tento outra vez apoiar meu peso no pé direito.

Ele dói. Preciso ir ao posto avançado de curandeiros.

O sangue pulsa no meu tornozelo machucado, pulsa em minhas veias, pulsa dentro de minhas orelhas, cada batida surda ecoando dentro de minha cabeça.

— Ser obrigado não é um problema.

Olho para o contador no display.

Um minuto a menos.

— Eu quero roubá-la. — Digo.    

Deuses e FerasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora