Capítulo 42

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Noite. Centro de treinamento.


É a primeira vez que entro no lugar sem sentir um peso na consciência por estar fazendo algo para espionar meu alvo e par. Passo o braço no console ao lado da porta e ela se abre com um estalo. Atravesso a curta passagem em arco e chego ao interior. Impossível entrar lá e não olhar para os cantos entre as paredes e o teto, onde as minhas duas últimas câmeras continuam alojadas.

Kali está sentada em um dos equipamentos para musculação, perto da porta do vestiário.

A maior parte das luzes está desligada, da mesma forma como estiveram no dia em que a tirei da CMT. Algumas delas, junto das paredes, permanecem acesas, mas são difusas e iluminam muito pouco.

A garota enrola na mão direita uma faixa branca, junto do pulso. Quando a porta se fecha atrás de mim, ela levanta os olhos.

— Você não deveria se aproximar de mim — diz ela. — Eu sou sua fatalista.

Paro um pouco distante dela. Fico longe de qualquer outra coisa, também. A parede fica a diversos passos de mim, assim como os outros equipamentos de musculação. Parece que estar parado no meio do aposento é errado, como se eu precisasse de algo em que me apoiar para continuar em pé.

— Mas também é meu par. — Digo.

Ela continua me olhando.

— E também é meu alvo — continuo, minha voz saindo baixa, na defensiva. — Acho que temos mais em comum do que apenas o fato de sermos pares um do outro.

O olhar dela não hesita, me examinando a fundo.

— Pares únicos. — Acrescenta.

Concordo com a cabeça.

— O que está fazendo aqui? — Ela pergunta. — Achei que estaria com a Lenina. Pelo que sei, você estava me investigando através dela. — O tom não é pesado, embora as palavras carreguem, consigo, uma carga intrínseca de ironia.

— Não há mais nada que eu precise saber por ela.

Kali nada diz, e então volta a olhar para o punho. Ela passa a faixa mais algumas vezes em torno dele, trançando-a em alguns pontos, apertando firme. A ponta do final cola com um adesivo na própria faixa, e a garota testa o punho, girando-o, abrindo e fechando a mão.

— Eu quero ajudar você. — Digo, respondendo à pergunta dela.

A fatalista se apruma sobre o equipamento, colocando as mãos entre as pernas, esquentando-as com o próprio calor.

— Eu não preciso de ajuda. — Ela diz.

— Precisou quando estava presa na CMT — digo, lembrando da última vez em que estive neste mesmo lugar. — Você disse que solicitaria ajuda, se precisasse, e eu sei que usou sua campainha. Eu vi, quando estava saindo, que você tirou ela de seu braço. Ceres disse que as campainhas são descartáveis, só se pode usar uma vez. E você a usou.

Kali parece desconcertada, embora haja pouco reflexo disso em sua expressão. Mas tenho certeza de que está lá.

— Eu não preciso de sua ajuda agora — ela se corrige. — Preciso apenas que você fique distante. Preciso que você demore o máximo possível para completar sua lista de conquistas. Quero que nosso pareamento não ocorra antes do momento certo.

— E qual seria esse momento? — Pergunto. — Pelo que sei, você estava tentando se livrar de mim quando foi até Fenrir. Com a suposta atualização.

Deuses e FerasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora