Capítulo 53

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Uma hora depois.


Eu e Kali sentamos um de frente para o outro no vagão do trem, voltando para o subúrbio.

O vagão não está nem cheio, nem vazio. A vida noturna de Dínamo é agitada, ainda que se esconda nos becos e nas sombras dos prédios. Nos isolamos o máximo possível do restante das pessoas e permanecemos quietos durante praticamente todo o trajeto. Assim como ficamos calados quando os mantenedores foram embora e rumamos para a estação da Praça Atômica.

Kali pôs os fones de ouvido e, desde então, eu caminhei sozinho.

Me aprumo no assento desconfortável e olho para ela. Seu rosto está virado para baixo, os olhos aquilinos miram a tela implantada no braço. Seu cabelo negro e liso, puxado por sobre sua cabeça, cai como uma longa cascata por cima de seu ombro direito. O lado esquerdo de sua cabeça, com fios novos e curtos crescendo aos poucos. A pele bronzeada do pescoço à mostra. O fone de ouvido metido em sua orelha.

— Kali. — Eu a chamo.

Ela não me ouve.

Espero algum tempo. Então me aproximo dela e tiro o fone de sua orelha. As pontas de meus dedos tocam de leve a pele de seu rosto, e ondas de eletricidade se espalham por todo o meu corpo.

Kali olha para mim. Outra vez há apenas brasas dentro de seus olhos.

— Nós precisamos conversar. — Digo.

Ela tira o outro fone e olha para mim.

— O que vai acontecer a Leon, quando o prazo de tolerância vencer? — Pergunto.

— Os mantenedores vão levá-lo até a CMT e lançar uma convocação para que eu compareça a uma sessão de execução — diz ela. — É uma maneira de forçar os fatalistas a cumprir com conquistas difíceis de alcançar. Como é o caso dessa.

— E se você se recusar a ir?

— Então passo um período presa. E Leon será fuzilado.

Arregalo de leve os olhos.

— Achei que apenas o fatalista designado tinha permissão para matar alguém.

— Há exceções. — Ela dá de ombros.

Olhamos, os dois, para fora da janela. Ela segura os dois fones de ouvido na mão esquerda e, por alguma razão, eu tenho medo de perdê-la para o display outra vez.

— Eu gostaria que as coisas fossem diferentes. — Digo.

— Eu também.

No rosto dela, agora, não há lágrimas rolando. Há apenas tristeza.

Ficamos calados por mais algum tempo. Do lado de fora do trem, a Zona Industrial brilha como uma fileira de pedras preciosas ao longo do rio que corta Dínamo de uma ponta a outra.

— O que é uma cápsula de contato? — Pergunto.

A garota ergue uma sobrancelha e me olha.

— Como assim?

— Quando Fenrir apareceu na sala de entrada de seu apartamento, vestindo um roupão, ele disse que estava em sua cápsula de contato — resmungo. — Mas eu nunca ouvi falar desse tipo de coisa.

Curiosamente, Kali sorri de leve.

— É para fazer sexo.

Minha vez de levantar uma sobrancelha.

— Para fazer sexo através da Teia — ela complementa. — Pelo que sei, você acessa a Teia pelo seu display ou qualquer computador e escolhe alguém aleatoriamente. Depois, entra em uma câmara de vácuo e faz sexo com alguém à distância, através de estímulos sensoriais diversos que simulam a experiência real. Tecnicamente você não sabe com quem está transando, mas isso não importa.

— Porque alguém faria isso? — Pergunto, ainda que minhas bochechas ardam outra vez.

— Ouvi dizer que é totalmente seguro — responde ela. — E mais higiênico.

Percebo que ela enrubesce um pouco, mas seus cabelos tapam a luz e me impedem de ver seu rosto por completo.

Quase ao mesmo tempo, o trem silva um pouco mais, e os freios começam a agir. Pouco depois, paramos na estação do subúrbio e o vagão se esvazia. Outras pessoas entram em seguida.

Andamos lado a lado, mas a uma distância de um passo, entre nós. Descemos um pequeno lance de degraus na saída da estação e paramos frente a frente. Como se houvesse algo a ser dito, embora nenhum de nós seja capaz de começar a falar.

— O que você quis dizer com... estarmos nos preparando para parear? — Pergunto.

— Nós precisamos nos parear — murmura ela. — Você sabe disso.

Sinto que algo dentro de mim parece rachar, uma dor quase física de ansiedade e nervosismo.

— Eu achei que nós iríamos esperar.

— Não podemos nos dar a esse luxo.

As mãos dela apertam uma à outra, seu corpo parece tremer com o vento frio da noite. Todo o ar parece mais gelado do que antes. Eu dou um passo à frente e, ela, também. Ela olha ligeiramente para cima, para me encarar; eu olho um pouco para baixo. Nossos olhos se prendem, nossos olhares se cruzam e não se largam mais.

— Foi por isso que começamos o que estamos fazendo — diz ela. — Tudo que está acontecendo é derivado do que temos de fazer. Somos pares, e isso muda tudo. Você sabe disso.

— Sim, eu sei.

Ela estende as mãos para pegar as minhas. Seus dedos estão gelados; os meus, enrijecidos. Ainda assim, eles se entrelaçam e se apertam, firmes, como se devessem ter estado juntos desde sempre.

Quase automaticamente, nossos rostos se aproximam devagar, e primeiro nossas testas se tocam, nossos narizes, nossas bocas. Os lábios se abrem, se encostam, as línguas se buscam e se encontram. Os braços passam por trás das costas, puxam para perto, seguram firme, como se não quisessem largar, como se quisessem encarcerar um ao outro. O beijo dela é terno, calmo, seguro de si. O gosto de sua boca é doce, mas é como se o que eu sinto não fosse tudo o que seu beijo é. Seguro-a firme, mas isso não parece o bastante.

Mantenho os olhos fechados por um tempo, os lábios colados aos dela. Depois, me afasto e abro os olhos. Ela faz o mesmo.

Há fogo.

Um fogo forte, que queima, arde com força, com voracidade, destrói tudo o que encontra pelo caminho. Um fogo totalmente diferente do que o que ela acabou de fazer. Um fogo que não condiz com o beijo que ela me deu.

Um beijo superficial.

Um beijo mecânico, automático. Um beijo prescrito pelo display, em conformidade com a Teia. Incapaz de quebrar sua superfície de gelo e alcançar seu fogo, no mais profundo recanto de seu âmago, queimando de uma maneira que eu não consigo entender. Algo que eu só espero ter algum dia.

Algo que ela sempre teve.

— Eu tenho que ir, Harlan. — Ela murmura.

— Sim. Eu também.

Nós dois ficamos lá por apenas mais um momento. Ela solta minhas mãos.

— Boa noite. — Diz.

— Boa noite. — Digo.

Viramos as costas um para o outro e seguimos, cada um, o seu caminho.

Depois de alguns passos, olho para trás.

Ela se afasta com os fones de ouvido nas orelhas.

Continuo meu caminho sozinho.


Deuses e FerasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora