Como um tribunal

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Dias atuais


Mais um dia de despertador de celular. Era o primeiro dia de aula e eu não estava contente por voltar à rotina. As aulas de constituição estavam muito longe de serem minhas preferidas.

Levantei rápido me sentindo descansada, finalmente. Demorei muito tempo para me acostumar com o dormitório e o campus e agora, felizmente, eu podia dizer que havia, de fato, me adaptado a tudo. Vi Wendy dormindo esparramada na pequena cama, ainda com a maquiagem carregada no rosto. Ela devia ter voltado tarde como sempre.

Wendy Kimura, minha colega de quarto maluca, vinha de uma família japonesa e, confesso, quando a conheci o estereótipo me fez pensar que ela fosse extremamente disciplinada, mas a verdade estava longe de ser essa. A garota era simplesmente maluca. Seu rosto possuía traços angelicais quando sem maquiagem, como aquelas bonequinhas perfeitas do Japão, mas ao notar as tatuagens espalhadas pelo corpo, principalmente nos braços, e a maquiagem preta carregada, entendi que de angelical ela não tinha nada. Wendy era uma colega de quarto que não me dava dores de cabeça, só bagunçava o quarto. Eu poderia conviver com aquilo.

Já eu poderia ser considerada o completo oposto dela. Uma das semelhanças entre eu e Wendy era a idade, vinte e um. Uma das diferenças? O curso. Enquanto eu estudava para me tornar  advogada, Wendy pretendia ser musicista.

Depois de muitas horas de dedicação e estudo, consegui ser aceita na NYU e saí da minha pequena cidade natal, Mullins, na Carolina do Sul. E apesar de todo o tempo que me dediquei a ingressar na universidade, eu ainda estudava da mesma forma para poder me formar. Quando não estava na sala de aula, na biblioteca ou em algum canto lendo, eu dormia, é óbvio. E todas as quartas e sextas-feiras trabalhava de garçonete no Doran'z, um restaurante mexicano que me pagava um salário mediano que me ajudava a viver e me permitia enviar uma quantia miserável à minha família.

A situação não estava nada boa para eles. Quando estive em Mullins há pouco tempo, no Natal, minha mãe fez tudo parecer perfeito, mas meu irmão mais velho, Jack, me disse a verdade e eles estavam com pouco tempo para pagar a dívida com o banco. E caso não pagassem, claro, seriam despejados. Precisei respirar fundo e contar até dez para não discutir com minha mãe por ter escondido isso de mim, ela tinha uma personalidade e tanto. Já meu pai estava em estado vegetativo há dois anos, como os médicos gostavam de se referir.  Ele sofreu um AVC e sofreu uma sequela: epilepsia crônica, o que causava paralisia em seu corpo inteiro. A internação, os cuidados e os remédios custavam muito caro, e minha mãe e meu irmão não conseguiam mais dar conta de tudo.

Jack era policial e essa não era uma profissão tão valorizada na minha cidade, mas eu sabia que ele fazia por amor. Já minha mãe trabalhava na prefeitura da cidade e também não ganhava um grande salário. Resumindo, precisávamos de dez mil dólares para quitar a dívida com o banco e ainda teríamos a casa, caso contrário, estaríamos na rua. Era difícil com o que ganhávamos.



Respirei fundo mais uma vez tentando colocar a cabeça no lugar e levantei pulando as roupas de Wendy que estavam espalhadas pelo chão. Fui à maldita festa de Halloween ano passado como combinamos e ela não cumpriu a parte do trato. Até beijei um desconhecido e tomei um verdadeiro porre pela primeira vez na vida e não valeu de nada. Pisei em algo que fez barulho e vi que era uma caixinha de sombras, agora com a tampa quebrada.

Deixei tudo do mesmo jeito e ela que se virasse depois, peguei minha pequena pilha de livros e minha atravessei no corpo a alça da minha bolsa, saindo do dormitório em seguida. Cheguei ao auditório, onde a aula de constituição acontecia, com o professor mais sério que já tive, o Sr. King. Eu nunca o havia visto sorrir uma vez sequer, parecia até um tribunal.

O AcordoWhere stories live. Discover now