DOZE

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O sol não brilhava. O céu estava cizento e flocos de neve caiam sem parar. Era uma manhã fria como a muito tempo não se via.
Lilian acordou ainda atordoada com a revelação da irmã e Claire tão perturbada quanto por não ter conseguido guardar o segredo. Mas talvez, fosse melhor assim, juntas eram mais fortes. Ao menos era nisso que Claire queria acreditar.
O café da manhã foi em silêncio. Mal comeram. Seus pensamentos estavam distantes, mas no mesmo lugar: Augusto, Jean, a fuga e os riscos desse plano.
Seria essa noite, quando Jean estivesse de guarda, ele deixaria August sair, até aceitara tomar uns socos para parecer que não havia sido de propósito. As garotas arrumariam comida, água, roupas e um cavalo para August e deixariam tudo na trilha que cortava o bosque e então ele partiria. Ainda nem havia ido e Claire já se perguntava se o veria outra vez. Torcia com todo coração para que sim.
          O dia passou devagar e rápido ao mesmo tempo. As horas pareciam se arrastar até o entardecer, mas quando a noite começou a cair, o tempo pareceu correr. Durante o dia inteiro, ela não teve uma única chance de ir levar mais comida para August. Os rapazes que faziam guarda durante o dia não eram dos mais simpáticos e Jean só estava lá a noite. Também quase não conversara com Lilian, a irmã estava muito quieta e chorosa, provavelmente tentando aceitar certas coisas. Não seria nada fácil. Claire só torcia para que a irmã fosse forte o bastante para conseguir.  E para que ela própria também fosse.
        Quando a mãe deitou, Claire repetiu o mesmo da noite anterior, dessa vez sem se preocupar se Lilian veria ou não. Foi até a cozinha, pegou um cesta e colocou comida, o máximo que coube. Pegou também alguns casacos do pai e suas economias, que ela sempre guardava na casa da avó para não ceder as tentações de gastar. Era basicamente o dinheiro que ganhava de tia Madeleine a cada vez que a visitava e algumas moedas que o pai lhe dava de vez em quando. Sabia que não era muito, mas era tudo o que tinha. Voltou para o quarto e organizou tudo na cesta e em uma bolsa de couro que a mãe trouxera com roupas para ela e Lilian. Colocou um casaco por cima do vestido e a capa azul, nada de vermelho, nada de parecer com Lilian dessa vez. Calçou as botas e quando estava pronta para ir, Lilian sentou-se na cama e pediu que ela esperasse.
— Você vai comigo? — Claire indagou, a irmã não havia mencionado nada sobre ir com ela o dia inteiro.
— Acho melhor não. Mas quero que de algo a ele. — Lilian foi até o outro lado do quarto, abriu uma gaveta e tirou de lá suas economias também. Junto com o dinheiro, entregou a Claire o colar que tinha no pescoço, um que nunca tirava desde criança, o pingente feito de madeira talhada era um sol. August fizera aquilo para ela. “Para quando os dias forem muito escuros" dissera ele ao lhe dar o presente. Agora era ele quem precisava mais de uma luz para os dias escuros que viriam. — Diga que é para que ele lembre-se de mim, e que quando os dias ficarem escuro, sempre haverá uma luz. Um sol escondido que o guiará.
— Certeza que não quer vir se despedir dele?
— É melhor assim.
— Tudo bem. — Claire a abraçou, pela primeira vez desde que tudo aconteceu.
— Agora vá, antes que fique ainda mais tarde.
— Volto logo, tente dormir.
— Tentarei.

                              ***

        Jean a esperava, ansioso. Claire também se sentia ansiosa e temerosa, nada podia dar errado.
— Tudo pronto? — ela perguntou.
— Sim. O cavalo já está na trilha, preparado.
— Jean, isso não é nem um tipo de armadilha, não né?
—  Não, Claire. Eu não sou o meu irmão. — ele riu, nervoso.
— Desculpe.
— Tudo bem. — Jean deu de ombros. — Agora entre e não demore muito, não temos muito tempo.
Ela obedeceu.
      August estava de pé. Andando de um lado para o outro.
— Oi.
— Até que fim, você chegou.
— Desculpe, me atrasei um pouco. Mas trouxe comida, roupas, um pouco de dinheiro...
— Dinheiro?
— Sim, minhas esconomias e as da Lili. Não é muito, mas é o máximo que conseguimos e...
— Não, não, eu não posso aceitar.
— August Jaggery, agora não é hora de ser orgulhoso. Você vai precisar mais do que nós. Lili também mandou uma coisa para você. — Claire se aproximou dele e lhe entregou o colar. — Ela disse que é para quando os dias ficarem escuros.
O sorriso que surgiu no rosto de August, foi como uma luz, que iluminou sua alma, seus olhos e aqueceu seu coração. Foi a última dose de coragem que lhe faltava.
— Ela sabe que estou indo embora?
— Sabe. Mas não quis vir se despedir.
— Tudo bem.
— August...
— Sim?
Claire olhou bem nos olhos dele, em parte porque queria memoriza-los bem para o caso de nunca mais o ver e em parte porque o que ia falar era deveras sério. Ela soltou o ar de seus pulmões e contou a ele o que havia feito. Que Lilian agora sabia o que tinha realmente acontecido. Mas August não ficou bravo, nem decepcionado com ela, só a abraçou e disse, pela milésima vez nos últimos duas, que tudo ficaria bem.

— Olha, eu não quero atrapalhar esse momento de amor fraternal de vocês, acho tudo muito lindo, mas temos que andar logo com isso. — disse Jean com impaciência ao entrar na sela.
— Tudo bem. Está na hora.
— É, está na hora. — Claire concordou. Ela entregou a cesta a August e o abraçou uma última vez. Em seguida, fechou os olhos, para não vê-lo socar Jean. Mesmo com consentimento, ainda parecia meio errado para ela que August batesse no garoto.
— Chega, chega, acho que já estou machucado... Ai, machucado o suficiente.
— Desculpa.
— Tudo bem, só por favor, sai daqui logo, eu não quero ter sido surrado em vão.
Claire riu. E seguiu August para fora dali. Ele trancou a sela com Jean dentro e agradeceu uma última vez.
Antes de ir para a trilha pegar o cavalo, ele quis passar em casa, Claire insistiu para ir com ele.
Lá, August pegou suas próprias economias, mais algumas roupas, e deixou uma carta para o pai e fez uma outra para que Claire lesse quando ele já houvesse ido embora.
       — Desculpe não acompanhá-la até  em casa, sei que você não gosta do escuro, mas Johan pode me ver.
— Na verdade, eu até acho que estou começando a gostar do escuro.
Eles riram. Mais de nervosismo do que por graça mesmo.
— Acho que é agora que a gente diz aquela palavra, não é?
— Acho que sim. — O rapaz concordou.
— Vou sentir sua falta, August. — ela o abraçou com toda sua força.
— Também sentirei a sua, pequena. Muito mesmo.
— Não vai me esque...
— August! — Claire foi interrompido por Lilian que corriam em direção a eles, trazendo consigo uma bolsa e, pela primeira vez, com as bochechas muito rosadas. Nem parecia que costumava ser tão pálida.
— August, você não pode ir embora.
— O que? — ele e Claire indagaram em uníssono.
— Você não pode ir embora sem me levar junto.
— Lili o que você está fazendo? — Claire soltou a mão de August e foi de encontro a irmã.
— Eu não posso mais ficar aqui, Claire. Não depois de saber o que fiz, não sem saber o que há de errado comigo e como controlar isso. Eu sou um risco para você e a mamãe e o papai, para todo mundo... Eu não posso ficar aqui.
— Mas você não pode me deixar, Lili.
— Eu não estou deixando você. — Lilian se abaixou diante da irmã. — Sempre estaremos juntas, você sempre estará comigo e eu com você, nada vai mudar isso. Só que eu não posso mais ficar aqui, entende?
Claire balançou a cabeça, assentindo.
— E August, eu entendo se não quiser me levar com você, não precisa se não quiser, não pra onde você vai, só me deixa em algum lugar no caminho e eu me viro.
— Tá brincando? Acha mesmo que eu deixaria você em um lugar qualquer? Eu não acho que isso seja o melhor pra você, fugir digo, as coisas não serão nada fáceis agora, serão piores do que todas as dificuldades que já passou aqui, mas se você quiser vim... Lilian, — ele se aproximou dela e tomou suas mãos na sua — ter você comigo tornara tudo mais fácil. Porque, isso não é mais segredo, eu amo você. — ele sorriu, ela sorriu e o abraçou.
— Eu também amo você, August. — falou.
— E por que você não queria casar com ele? — Claire perguntou.
— Porque eu... Porque tem algo de errado comigo.
— Tem algo de errado com todos nós. — disse August. — E seja como for, você é o meu erro favorito.— ele beijou a testa dela. — Agora vamos?
— Vamos. — Lilian aceitou a mão dele. Mas antes de ir, abraçou a irmã uma última vez e prometeu que se veriam novamente, mesmo que demorasse.
August também a abraçou. E tirou do pescoço o coçar que Lilian havia lhe dado e que um dia, foi ele quem deu a ela. — Quero que fique com você, pequena. — ele o colocou no pescoço de Claire. — Para que lembre-se que...
— Mesmo nos dias escuras, ainda haverá uma luz.
— Isso aí. E que sempre estaremos com você.
— Eu amo você, August.
— Também amo você, Claire. Também amo você. — ele a ergueu do chão, e rodopiou como fazia quando ela era menor. — Não se esqueça de mim.
— Nem você de mim.
— Jamais esqueceremos. — disse Lilian. Se abraçaram uma última vez.
       E enquanto Lilian  e August corriam para a floresta e Claire os observava, o escuro não a assustava mais, seu medo agora era de não vê-los outra vez.
Naquela noite, ao voltar para casa, Claire dormiu e sonhou com um mundo onde Lilian e August nunca teriam ido embora. Onde todos poderiam ficar juntos. A vovó não teria morrido e ninguém precisaria morrer ou fugir por ser diferente. Um lindo sonho, que ela guardaria na memória para quando a saudade apertasse.


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