SETE

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Claire pensou estar sonhando com Lilian gritando em algum lugar distante. Gritos de fúria e medo. Também pensou que fizesse parte de um sonho os gemidos suplicantes que ouvia, mas, quando o barulho se tornou alto demais e ela despertou por completo percebeu que não era um sonho, e ao chegar na cozinha e se deparar com aquela cena a garota viu sua vida se transformar em um terrível pesadelo.
        A irmã estava completamente fora de si. Desnorteada e descontrolada.
— Suma! Suma! Suma! — gritava repetidamente, enquanto desferia golpes contra um corpo caído no chão. Havia sangue em suas mãos, no vestido, no chão, e todo o líquido viscoso vinha de um só lugar: o corpo desfalecido diante de si. Claire levou alguns segundos para processar a imagem. O que sentiu poderia ser dividido em três estágios: confusão, completo choque que a paralisou e uma combinação de pavor e desespero unidos a compreensão do que estava acontecendo quando seus olhos encararam o rosto ensanguentado da vítima. Não era um ladrão invasor ou algum agressor que tentara algo contra sua irmã, tampouco era um lobo nojento como Lilian repetia ainda batendo com a madeira que tinha em mãos e fazendo mais sangue se espalhar no piso, o corpo ali, era de sua avó.
Talvez o que aconteceu a seguir tenha sido puro instinto e desespero, mas Claire se lançou contra Lilian, gritando em meio a lágrimas, pedindo para que ela parasse com aquilo.
— Você vai matá-la! Lilian, você vai matá-la!!
Mas Lilian não parecia ouvi-la. Era como se a verdadeira Lilian, aquela que Claire amava e admirava, não estivesse ali, só restasse uma casca com sua aparência cheia de fúria e brutalidade.
— Para com isso! Para!! — A garganta dela ardeu com a força do grito, Lilian a empurrou para longe, fazendo com que Claire caísse no chão e batesse a cabeça contra uma cadeira.
— Eu preciso matá-lo, eu preciso, eu preciso, preciso Claire. Preciso matar. Ele não pode mais continuar me atormentando. Eu preciso, preciso. — repetia, as palavras misturando-se ao sair de sua boca, atropelando-se. — preciso matar o lobo, ou ele me mata, preciso matar ele. Ele vai nos matar. Preciso matá-lo. — ela continuava desferindo golpes brutos contra a avó, pensando estar vendo um lobo ainda agonizando a sua frente. E não o corpo praticamente sem vida de uma doce senhora que tanto a amava.
— Não há lobo algum. LILIAN! NÃO.HÁ.LOBO.ALGUM. Você está matando a vovó! — os soluços e lágrimas embargavam sua voz. Precisava fazer com que Lilian parasse. Se jogou contra ela outra vez, tentando segurar seus braços e afastá-la da avó antes que fosse tarde demais. Mas Lilian era maior e também mais forte, outra vez empurrou a mais nova que caiu longe. Claire levantou-se e lançou-se contra ela mais uma vez, dando chutes e socos, gritando súplicas para que a irmã parasse e pedindo socorro o mais alto que conseguia.
      E não demorou muito para que fosse atendida. Batidas na porta foram ouvidas, mesmo por cima dos gritos de ambas as garotas, pouco antes da porta abrir com alguns chutes fortes o bastante para arrebentar a fechadura envelhecida. August entrou segurando uma tocha acesa, seus olhos arregalados, levou poucos segundos para que apontasse a luz na direção certa e visse o que estava acontecendo antes mesmo de abrir a boca para perguntar outra vez.
— August! August, me ajuda! — Claire pediu, lágrimas encharcando o colo da sua camisola azulada e tornando sua visão turva. O rapaz apagou a chama da tocha e afastou Claire de sua irmã, antes de desferir um golpe contra a cabeça dela, usando força suficiente para fazer Lilian cair inconsciente. A madeira caiu ao lado dela, manchada de escarlate como suas mãos e sua face.
      Ele e Claire se olharam e como se aquele gesto pudesse resolver tudo, ela se atirou nos braços dele e deixou que as lágrimas caíssem, soluçando e sentindo o cheiro de fumaça, fogo e metal na roupa de August. Provavelmente ele estivera trabalhando até tarde, forjando espadas ou pontas de flechas.
— O que aconteceu aqui? — August perguntou, seus olhos ainda arregalados e sua respiração acelerada, Claire podia sentir o coração dele batendo no peito tão rápido quanto o seu.
— Foi o lobo. Ela me disse que um dia ele iria sair do porão e coisas ruins aconteceriam.
— O que? Eu não estou entendendo, Claire. Um lobo...
— Eu acordei...— ela respirou profundamente, e olhando nos olhos dele contou-lhe tudo o que sabia. O que seus pais sempre falavam sobre a irmã ser diferente, o que Lilian dizia sobre si mesma e que sempre a advertiam para que não falasse a ninguém sobre isso pelo bem da irmã, podia ser perigoso porque as pessoas não entenderiam. Ninguém entendia ao certo, nem mesmo a própria Lilian. Também contou sobre a conversa que tivera com ela, sobre o que a irmã lhe contou a respeito de um lobo que a atormentava, um monstro dentro dela, preso em um porão escuro de onde algum dia teria que sair.

— Não foi a Lili, August. Foi o lobo. Talvez ele seja um demônio e...
— Não importa o que ele é, Claire. Não importa o que esse lobo significa agora. Precisamos consertar isso. — ele lançou um olhar para o cadáver da senhora e o corpo inconsciente de Lilian. 
— A vovó está...?
— Sim, está...
No fundo, Claire já sabia. Mas ouvir a confirmação foi como ter uma faca cravada em seu peito, torcendo seu coração, as lágrimas voltaram com tudo e a pequena garota nem sequer sabia definir o que estava sentindo. Medo. Confusão. Dor, muita dor. Tristeza. Incapacidade. E raiva, principalmente raiva. Só não sabia se de sua irmã ou do lobo.
— Você precisa ser forte, agora. — August abaixou-se para ficar da altura dela — pelo bem da sua irmã. Lili vai precisar muito de você, Claire. Todos vão...
— Vamos contar que...? Vão matá-la August. Papai sempre diz que as pessoas não entendem certas coisas. Vão...vão queimá-la como fizeram com a família De la Barthe...
Não. Shhh — August colocou o dedo indicador em frente aos lábios de Claire pedindo silêncio — Não fale dessas pessoas... E sua irmão não é bruxa, você é uma bruxa?
Claire balançou a cabeça negativamente em resposta.
— Viu? Então não tem como a Lili ser, as duas seriam. Ninguém vai ser queimado, eu prometo. Mas eu vou precisar da sua ajuda, tudo bem?
— Tudo bem.
— Então enxugue essas lágrimas e pegue roupas limpas para sua irmã e alguns lençóis velhos.
         Claire foi fazer o que August pediu. Quando voltou a cozinha, ele estava concertando a porta que havia quebrado. Em seguida, limparam o sangue que havia na pele de Lilian, colocaram nela roupas limpas e August a levou para o quarto.
           — Quando ela acordar talvez não lembre o que aconteceu, como acontece às vezes e ela simplesmente esquece das coisas. Como quando éramos crianças e...— ele parou e suspirou, quase falara demais.
— E?
— E nada. Se isso acontecer, digo, se ela não lembrar, não contaremos a ela...
— Mas August, ela que...
— Não importa Claire. Você quer protegê-la, não quer? Quer proteger seus pais também e a si mesma para que não aconteça o mesmo que aconteceu com os De la Barthe?
— Uhum.– ela balançou a cabeça, positivamente.
— Então tem que fazer o que eu disser. Quando Lilian acordar, não falaremos nada sobre o que houve, nem a ela, nem a ninguém. Você vai dizer a Lili que sua avó saiu para pegar água no rio e que ela adormeceu enquanto vocês esperavam que a vovó voltasse, se alguém perguntar também dirá isso, não importa quem seja, mesmo que sejam seus pais. Está me ouvindo, Claire?
— Estou.
— Otimo. Quem fez isso com a sua avó foi o lobo. Um lobo terrível e cruel que a encontrou no rio quando foi pegar água, estava escuro e o bosque é perigoso a noite. Todos sabem.

      Deixaram Lilian dormindo, e August repassou o plano com Claire mais uma vez e a fez repetir duas para que não houvesse erro. Quando a manhã chegasse, ela iria na casa dos vizinhos pedir ajuda, dizendo que a avó não havia voltado desde a noite anterior. Precisava ser forte como nunca havia sido antes!
— Mas quando procurarem pela vovó e a encontrarem aqui...?
— Não irão. Ela foi ao rio, lembra? — August secou uma lágrima que escorria pelo rosto de Claire, lágrimas não paravam de sair um só momento mas, agora, ao menos, ela estava conseguindo se conter um pouco mais.  — Venha, vamos, me ajude aqui com os lençóis.
August forrou um dos lençóis velhos no chão e colocou o corpo da senhora em cima, antes de enrola-lo com o pano e depois com mais um. Claire o ajudou, tentando conter os soluços e ignorar a dor que esmagava seu coração.
— O que vem agora? — os olhos azuis dela brilhavam na escuridão.
— Fazer com que ela vá ao rio buscar água. — ele plantou um beijo na testa da menina e pediu que ela fosse para cama, depois que ele saísse, e tentasse dormir. Na manhã seguinte, ele voltaria.
E assim, o rapaz se foi, deixando uma garota despedaçada e levando nos ombros o corpo sem vida de uma inocente.

      Na beira do rio, August soltou o corpo da senhora e com um punhal fez marcas o mais semelhante que conseguiu com as garras e presas de um animal. Atirou sua arma longe para que a correnteza levasse, lavou o sangue de suas mãos e foi embora, sentindo um peso horrível no peito.
Lilian não era má, ele sabia. Também não era uma bruxa. Mas por que havia feito aquilo? Será que agora ela se lembraria? Ele não sabia. Só lhe restava ir para a casa, queimar os lençóis e esperar o sol nascer.

[1635 palavras]

SANGUE & NEVE (+16)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora