SEIS

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Após convencer Claire de que ela havia sonhado com a irmã gritando o nome do filho do Caçador e fazê-la voltar a dormir, Lilian decidiu que precisava de um pouco de água para se acalmar e respirar. Longe dali.
Era noite de lua crescente, lá fora não devia estar tão escuro. Colocou a capa por cima da camisola e saiu do quarto devagar, na ponta dos pés para não fazer barulho. A última coisa que precisava era que Claire acordasse outra vez e desse início a mais uma interminável sessão de indagações.
A cozinha estava um pouco iluminada sob a penumbra de uma vela acesa esquecida. A pequena chama trepidava, por alguns segundos Lilian parou e manteve os olhos fixos nela. Algo tão simples, frágil a ponto de se desfazer a um sopro, mas, ao mesmo tempo, perigoso, capaz de iniciar um incêndio.
As vezes, em mais vezes do que gostaria na verdade, Lilian se pegava vislumbrando as mais diversas tragédias que poderiam assolar aqueles a sua volta e a si mesma. Não era algo voluntário, simplismente vinha. Quando menos esperava, um clique era acionado em sua mente e seu corpo paralisava a medida que sua imaginação passeava por cenários trágicos, ouvindo ecos e gritos, sentindo calor ou frio, medo, desespero, aflição e coisas que nem sequer conseguia descrever.
Balançou a cabeça e piscou algumas vezes, na tentativa de afastar da sua mente as imagens de um incêndio. Suspirou profundamente e fez o que havia ido fazer ali.
A água fresca descia por sua garganta e era como sentir alívio, nem sabia que estava com tanta sede até dar o primeiro gole. Água também a acalmava. Se pudesse, viveria submersa em um lago onde não precisaria ver ou falar com ninguém, tentar ser como as outras garotas fazendo esforços em vão, tampouco ter medo dele, e talvez assim parasse de sentir e pensar coisas ruins.

Dois copos e meio depois, Lilian deu-se por satisfeita. Guardou o copo e a jarra de água feita de barro, antes de abaixar a cabeça para apagar a vela com um sopro suave. E como em uma dança sincronizado, no momento em que o ar escapou por entre os lábios dela e a chama se desfez, um arrepio percorreu sua espinha e uma sombra vultosa passou diante de seus olhos, tão rápido que seu coração saltou.
— Calma. — sussurrou — Não foi nada. Só imaginação.
Ao erguer a cabeça, o vulto escuro passou novamente diante de si. Rápido como um relâmpago ricocheteando no céu durante uma tempestade. E voltou a passar uma e outra e mais outra vez, repetidamente, para lá e para cá, girando em torno dela, deixando Lilian tonta e desesperada.
Embora uma voz, como um fio de sensatez, sussurrasse no mais íntimo de seu ser que aquilo não era real, a garota não conseguia ficar calma. Não conseguia se agarrar a esse fino fio e emergir de seus delírios. Afinal, estava vendo bem na sua frente, sentia o medo fazer seu coração doer, ouvia seus gritos apavorados, como não seria real? Se conseguisse manter a calma em momentos como esses, quem sabe pudesse lembrar de todas as vezes em que sua mente e seus sentidos lhe pregaram peças a fazendo ver e sentir coisas irreais. Mas, quando acontecia coisas assim, era como se Lilian se perdesse em um mundo diferente. Como se sua mente se dividisse em duas: o lado que sabia que nada daquilo tinha como ser real, e o lado que acreditava piamente no que via e sentia. Infelizmente, quase sempre era o segundo lado quem vencia a batalha pelo controle das ações e pensamentos da garota.

— Lili?! — uma voz familiar chamando seu nome ecoou até seus ouvidos, mesmo por cima de seus gritos apavorados. — Lili! Lilian! — A voz repetiu. Era o som da voz da sua avó! Será que isso era mais um delírio ou era real? Sua mente brigava tentando entender. Porém o turbilhão de sentimentos ruins e temerosos dentro dela falavam mais alto que qualquer outra coisa naquele momento. E os vultos, agora mais de um, ainda se moviam com velocidade sobre-humana em torno dela, como um redemoinho disperso de sombras escuras. Lilian continuava gritando e balançando os braços no ar, tentando se livrar das sombras vultosas, tentando atingi-las de algum modo, mas seus socos e tapas só iam de encontro com o vazio do nada. E foi aí que algo se ergueu em meio a escuridão, ficando maior e tomando forma diante de seus olhos, se aproximando mais e mais, enquanto ao longe ela ouvia uma voz chamar seu nome.
Não demorou muito para que ela reconhecesse aquela forma e os olhos brilhantes. Ele estava lá outra vez. Ela não aguentava mais isso! Estava exausta de sentir medo, viver constantemente apavorada, fora do ar, com seus pensamentos vagueando pelo momento em que o lobo a pegaria. Ouvindo as vozes que constantemente lembravam-na de que não teria como escapar quando ele chegasse, quando o porão fosse acerto; dizendo o quanto ele a quis, que ela estava marcada por ele em sua pele e em sua mente.
Por isso, quando ele chegou perto o bastante, a garota o empurrou com toda sua força. Socou, chutou. Até derrubar a criatura no chão. Agora, precisava dar um fim àquele terrível pesadelo que há anos a atormentava mesmo quando seus olhos estavam abertos e seu corpo desperto.
Junto a porta da cozinha, havia um grosso pedaço de madeira em um tamanho razoável esperando para ser cortado e servir de combustível para manter o fogo na lareira, era exatamente de algo como aquilo que a garota precisava. Deixando a criatura grunhido no chão, foi pegar a madeira. Podia sentir a adrenalina percorrendo seu corpo, agitando seu sangue, mas não era só medo o que estava sentindo dessa vez. Era também uma fúria irada como nunca havia experimentado antes, uma raiva que a consumia. Tão forte e descontrolada que enquanto batia no lobo, até extravasar toda a tempestade de emoções internas e silenciar os grunhidos dele e as vozes em sua cabeça, nem se deu conta de que, na verdade, não era um animal caído no chão recebendo os golpes. Não era grunhidos selvagens de um animal o som que ouvia...eram gemidos!




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SANGUE & NEVE (+16)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora