QUATRO

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Era inverno, os flocos de neve caiam devagar e iam de encontro à camada branca e fofa que cobria o chão. Lilian e August brincavam no bosque que circundava o povoado. Ela havia saído de casa com sua velha capa que a protegia do frio, era branca e cumprida e quando arrastava-se pelo chão parecia se misturar a neve. August a seguia, com suas botas escuras recém ganhas, o pai dele havia feito as peças com coro de algum animal que haviam caçado juntos tempos antes e o garoto se sentia todo orgulhoso daquele feito e de ter ganho um presente do pai.
           A vida dele não era nada fácil. A de ninguém no povoado era, na verdade, especialmente no inverno. Sortudos eram os nobres do Palácio para quem nunca faltava comida, uma cama confortável e uma boa lareira para se aquecer, August também tinha direito a tudo aquilo, ele sabia. Mas o pai sempre disse que não deveria pensar nessas coisas, não pertencia àquele lugar, tampouco às pessoas que lá viviam. August o obedecia e renegava o sangue da realeza que também corria em suas veias, mas quando os dias eram escuros e gélidos demais e a caça se tornava quase escaça ele não conseguia esquecer que, diferente do apelido irritante que o aborrecia, era bem mais que "o filho do Caçador", era o filho da princesa também. De Evangeline. A mais gentil e doce de todas as princesas, segundo seu povo, e também a mais bela e corajosa, segundo seu pai. Evangeline, a herdeira que renegou ao direito de reinar para casar-se com um caçador. Para ter o fruto daquele amor. August. O filho da princesa com o caçador, o que a matou...
A verdade, seu pai lhe disse certa vez, é que Evangeline nunca quisera ser rainha, tampouco casar-se com algum nobre de outra nação, escolhido para ela por sua família, um casamento que era tratado como um selo diplomático. Sem amor. Sem escolha. Uma prisão em forma de coroa. E quando conheceu o jovem Sébastien, percebeu que era bem mais corajosa do que imaginava e livre demais para se permitir ser enjaulada. Fugiu do palácio. Foi perseguida. Levada de volta. Grávida. Um pouco tarde demais para casar-se com Vladimir, o herdeiro do reino vizinho e selar a aliança entre os dois povos. Quando a criança nasceu, foi entregue ao pai. Um segredo exposto, mas que todos fingiam ignorar pelo bem do pequeno August. Agora com Clóvis no poder, todos sabiam que o irmão mais novo da verdadeira herdeira jamais aceitaria um bastardo tomando o lugar que pensava ser seu. O pequeno August então observava o sofrimento a sua volta enquanto seu tio governava com tirania, sonhando com o dia que poderia tomar seu lugar de direito e fazer do reino um lugar próspero e pacífico para todos, como sua mãe sonhara. Mas o pai vivia mandando o garoto esquecer essas tolices. "Um homem é o que é. E você, August, é um caçador, não um nobre. Quanto antes aceitar isso, melhor!" o homem lhe dizia, o garoto entendia seus motivos, só não conseguia se fazer aceitar ver tantos sofrerem quando tinha por direito a obrigação de mudar aquilo.
         No entanto, naquele momento, a realeza estava longe dos pensamentos de August. Estava feliz com seu presente e com o raro sorriso do pai que vira mais cedo. Sentia uma coisa boa no coração, uma sensação de esperança, como se uma voz no interior de seu ser sussurrasse que algo bom estava para acontecer.
Por outro lado, Lilian não estava dando a mínima para isso, nem mesmo queria August ali, tudo o que desejava era poder caminhar sozinha sobre a neve, ouvindo seus pensamentos para que, talvez assim, compreendesse tudo o que diziam e também queria seguir a garota de cabelos brancos e olhos brilhantes que as vezes aparecia em sua janela no meio da noite. Lilian sentia como se aquela fosse a única amiga que tinha...Bom, além do August, embora não dissesse isso a ele. O garoto podia ser um tanto irritante e, às vezes, agia como se ela estivesse completamente biruta e não fizesse sentido algum e não havia nada no mundo que a irritasse tanto quanto isso mas, apesar de tudo, gostava dele.

— Por que estamos passando por aqui de novo? — ele perguntou quando passaram pela quarta... talvez, quinta vez pela mesma trilha. Seu tom resmungão fez Lilian revirar os olhos. Ela não podia responder àquela pergunta, não podia dizer que estava voltando repetidamente àquele trecho do bosque porque era onde, minutos antes, vira a garota dos cabelos brancos. August jamais acreditaria. Lilian já tentara uma vez fazê-lo ver as coisas como ela via, mas não deu em nada além de aborrecimento e frustração para ambos.
— E para onde mais você acha que podemos ir? Mamãe falou para não sairmos desse lado do bosque, e com o lago congelado — ela apontou para a superfície lisa e petrificada a metros de onde estavam — só nos resta essa trilha.
— Mas eu não quero ficar andando em círculos no mesmo lugar. Isso é chato, Lili.
— Você é chato, August. — disse ela, usando o mesmo tom entediado que ele.
— Você também, Lili.
— É, eu sei. — um riso escapou de seus lábios e August sorriu de volta para ela.
E aquele sorriso foi o suficiente para fazê-la desistir, por enquanto, de rever a garota de cabelos brancos. August estava ali e era seu amigo, então por que não se divertir um pouco com ele? Lilian sabia que não vinha sendo a pessoa mais gentil com o garoto ultimamente e ela era a única pessoa que realmente sabia o quanto August se sentia sozinho as vezes e toda a culpa que sentia pela morte da mãe. Não é culpa sua, dizia ela, não foi você que segurava o arco de onde saiu a flecha. E ela não está aqui para que você pudesse estar. Mas isso meio que não ajudava muito porque ele preferia que a mãe estivesse, talvez assim seu pai sorrisse mais vezes.

— Mas então, Filho do Caçador, o que você quer fazer? — ela o fitou com um olhar desafiador e um sorriso travesso nos lábios.
August sorriu igual e tirou do bolso um pequeno punhal, antes de dizer: — Sou o filho do Caçador, não sou? Então que tal uma caçada, mademoiselle Lamartine?
— Acho ótimo! Claire está precisando de um novo par de botas.
E assim, eles saíram da trilha, desobedecendo as recomendações dos pais adentraram no bosque. Talvez o que aconteceu depois tenha sido alguma espécie de castigo dos deuses às crianças travessas, quem sabe. Ou talvez, tenha sido puramente azar.
Mas naquela caçada inocente encontraram bem mais que uma lebre para transformar em um par de botas, encontraram um monstro que mudou para sempre o rumo da história daquelas crianças.
          
                                  ***

Lilian e August caminhavam devagar, sem fazer o menor barulho, contendo até mesmo a respiração, enquanto observam a pequena presa se alimentar das poucas folhas rasteiras que a neve ainda não havia encoberto. August sorriu para Lilian, os olhos brilhantes de excitação, o pai ficaria muito orgulhoso dele, claro que ficaria! Seria a sua primeira presa. E teria que pegá-la sozinho.
— Fique aqui. — sussurrou para a menina cuja mão estava em seu ombro, acompanhando seus passos.
— Não, eu vou com você.
— Não, os dois vão chamar mais atenção...
— É um lebre e não um...
— Shhhhh. — o menino colocou o dedo indicador em frente aos seus lábios, pedindo silêncio. — Você fica aqui e caso ele fuja para esse lado, você o pega, tudo bem?
Lilian assentiu. Preferia fazer as coisas a seu modo, mas aquilo também pareceu um bom plano e, por via das dúvidas, era melhor assim pois não sabia se teria coragem de matar aquela pequena bola de pelos cinzentos.

August caminhava lentamente. Lilian observava cada movimento dele. Tão atenta no que estava acontecendo à sua frente, que nem notou o perigo surgir atrás de si. Passos tão lentos quanto os de August, mas sua presa era diferente e seu modo de caçar, bem mais feroz. E mesmo que garota se virasse e o visse, não haveria nada que pudesse fazer, ele era maior que ela, maior que August e também mais forte e rápido. Os olhos faiscavam, a baba escorria entre os caninos expostos e suas passadas eram silenciosas sobre a neve fofa, e a cada segundo o grande lobo de pelagem negra e íris douradas chegava mais perto da pequena Lilian.
August finalmente estava perto o bastante para pegar a lebre. Abaixou-se, segurando o punhal nas costas com uma das mãos e usou a outra para acariciar o pelo macio do animal, fazê-lo se sentir tranquilo para que não tentasse escapar, então, lentamente o pegou no colo e quando estava prestes a usar a lâmina para fazer o que devia ser feito, um grito agudo de puro pavor o assustou e ele deixou a lebre cair no chão junto com o punhal enquanto se virava bruscamente para ver o que se passava atrás de si. E, no momento em que viu, desejou de todo o coração que ele e Lilian não houvessem saído de casa.

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