NOVE

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Naquela noite, os primeiros flocos de neve começaram a cair. O manto gélido se formava de vagar no solo, cobrindo o sangue que ainda restava nas margem do rio. O vermelho sumindo em meio ao branco, um dueto quase perfeito, harmônico como em uma canção. Um cântico lúgubre de sangue e neve que muitos ainda haveriam de entoar.
           Quando Johan acusou August de ser o verdadeiro culpado pela morte da avó das garotas, a sala inteira pareceu parar, em choque. Claire ainda estava junto a August e se aproximou mais. Não podia deixar que o pior acontecesse a ele, ele era inocente.
Mas havia o punhal que Johan achou no rio e também havia seu testemunho. Ele vira o filho do Caçador arrombar a porta e entrar na casa, como August, Johan também tinha ouvido os gritos das garotas e saiu para ver o que era. Por sorte ou azar, August foi quem chegou primeiro. Johan então esperou, a espreita, observando o que se passava. Viu August sair carregando algo, que ele alegava ser o corpo da vítima, enrolado em lençóis, e adentrar na floresta.
— É mentira! É mentira, papai. — Claire chorava, tentando se soltar dos braços de August para ir até Johan fazê-lo se calar.
— Não precisa mais ter medo dele Claire, ele não poderá fazer nada com você. Conte o que aconteceu.— disse Johan. Ele podia até estar fazendo o certo, o que qualquer um faria, mas não fazia por justiça. Fazia por vingança. Sempre quis atingir August e tirá-lo de seu caminho, um crime daqueles era a oportunidade perfeita.
— Não foi o August! Foi um animal! Veja as marcas, foi um lobo!
— Claire, venha cá. — o pai a chamou. Ela olhou para August que permanecia em silêncio, sua expressão tão neutra que nem parecia que era ele o acusado, e quando seus olhos se cruzaram com o da garotinha, ele sorriu de canto. — Vai ficar tudo bem, Clai, vá com seu pai. — ele a soltou e ela foi.
— Conte o que houve, Claire. A verdade. — os olhos do seu pai pareciam mais azuis, mais escuros e duros também. Ele a encarava como se tudo dependesse do que ela diria e por isso sua única opção era falar a verdade. Mas ela sabia bem que não podia falar verdade, isso condenaria Lilian. Já mentir conforme o plano de August, o condenaria. Então a garota falou, nem uma coisa, nem outra, uma nova mentira. Um novo segredo.
          — Nós estávamos gritando. — começou, lançou um olhar para Lilian, do outro lado da sala, a encarando com confusão. — Eu mais do que a Lili...
— Por que gritavam? — seu pai perguntou.
— Lili estava tendo um pesadelo, um daqueles que ela tem as vezes, daqueles bem ruins. E eu acabei acordando, estava assustada porque Lili não acordava do pesadelo e porque percebi que vovó ainda não havia voltado do rio. Eu gritei pra que Lili acordasse. Então August chegou, ele ouviu os gritos porque estava indo para casa...
— De onde vinha tão tarde, Jaggery? — Johan indagou, seu tom fez Claire sentir vontade de chuta-lo em lugares onde Lilian já havia ameaçado fazer se ele a importunasse novamente.
— Eu estava fazendo pontas de flecha para a caçada de hoje cedo.— August respondeu. Ainda firme como gibraltar.
— Posso confirmar isso, eu mesmo pedi para o meu filho fazer as flechas.
— Prossiga, Claire. — o pai dela pediu.
— August então me ajudou com a Lili. Ele sabia que logo ela pararia de gritar, então esperamos, ele fez um chá para mim porque eu não conseguia dormir e estava preocupada com a vovó. August disse que na manhã seguinte viria para irmos procurá-la, mas que eu precisava dormir porque já estava muito tarde. E foi o que eu fiz. Hoje de manhã, quando o monsieur Jaggery e Frédéric vieram... — ela fez uma pausa, para conter as lágrimas. — quando chegaram aqui, eu estava esperando a Lili para irmos procurar a vovó, com o August.
— Você não me falou sobre o August.— disse Lilian.
— Porque não deu tempo. Mal acordamos e... Papai, não foi o August, Johan está fazendo isso porque tem raiva, porque quer casar com a Lili e sabe que...
— Lilian...— o pai interrompeu Claire, voltando-se para sua irmã. — pode confirmar o que sua irmã relatou?
— Infelizmente, eu não posso, pai. — o olhar que Lilian direcionou a august após responder, foi um misto de um “me desculpe” e “por favor que Johan esteja mentindo”.
— Bom, — o pai das garotas começou — não restam muitas alternativas, não é? August Jaggery você ficará detido até que os oficiais do rei venham buscá-lo para ser julgado... — o homem engoliu em seco. Sempre tivera August como um filho, viu o garoto crescer. — pelo crime de assassinato diante do Rei Clóvis Lodewijk.

— Não, pai! Por favor, pai, não faz isso! Não foi o August.— a voz de Claire soava embargada pelas lágrimas que encharcavam seus olhos, mas ela suplicava com todo coração para que não acusassem August. Não era culpa dele, insistia em dizer. Ninguém parecia ouvi-la.
— Acalme-se, Claire. Se não foi ele, tudo será esclarecido, mas não há nada que eu possa fazer. — o pai se abaixou e a trouxe para si em um abraço.
— Eu sei que ele não fez isso, pai, foi um lobo. Por favor, acredita em mim, eu, eu juro...
— Eu acredito em você, querida. Mas existem leis, uma testemunha e um punhal que incriminam August. Eu quero tanto quanto você que ele seja inocente.
— Ele é. — repetiu a garotinha em prantos.
       Por cima do ombro do pai, ela viu Frédéric se dirigir a August para levá-lo para a pequena cela suja que ficava na parte mais afastada do povoado, onde prendiam as pessoas que faziam coisas erradas até que alguém fosse a capital e os oficiais do rei viessem buscar o prisioneiro para o julgamento. Alguns crimes, eram julgados pelas pessoas do povoado mesmo, e o Lorde dava a sentença. Mas óbvio que com August não seria assim porque, embora há anos ninguém mais mencionasse isso e ele próprio parecia ter esquecido, tinha sangue nobre. E isso só deixava tudo ainda mais perigoso.
A mãe havia lhe dito uma vez, que August era um príncipe, filho da princesa Evangeline, mas ele não podia usar tal título, nem desfrutar das regalias da nobreza porque o rei o odiava. E se Clóvis usasse o julgamento para enfim se livrar do bastardo que era a única ameaça a seu reinado? Claire não podia deixar que nada acontecesse com ele! Não podia deixar que o levassem para o palácio. Precisava libertá-lo, não sabia como, mas o faria nem que pra isso tivesse de contar toda a verdade a Lilian e fazê-la ajudar.
Antes de ser levado por Frédéric, o rapaz olhou para a menina e sorriu, dizendo-lhe em silêncio, apenas com o movimento dos lábios: — vai ficar tudo bem, eu prometo.
— Eu também prometo.— Claire sussurrou. Prometo que vou ajudar você.

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