Capítulo 17 - Crítica e autocrítica

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– Sabemos também que cada um de vocês carrega os vícios dos seus partidos, e por que não dizer, das suas culturas de origem. Mas o revolucionário é acultural, o proletariado transcende fronteiras, as fronteiras que o próprio capitalismo esmagou, ao nivelar as peculiaridades culturais e reduzir tudo a uma questão de lucros e rendimentos. Não há moral no capital, mas entre nós tem que haver, não acha? Se queremos nos tornar líderes de nações, é preciso que nos livremos de tudo que em nós é pequeno, especialmente o que é pequeno-burguês, como as farras e a preguiça.

Essas observações me causaram um incômodo um pouco maior. Primeiro, por estarem me julgando por um único incidente. Qualquer um que me conhecesse sabia que eu não era nem preguiçosa, nem dada a farras, aquilo fora meramente um deslize. Mas eu estava havia pouco tempo na ELI; talvez fosse justo me julgarem pelo deslize.

Mais que isso, porém, chateou-me a crítica à minha "cultura de origem". Isto é, certo que vivíamos num dos capitalismos mais desgraçados do mundo no Brasil, mas isso não significava que nós do Partido éramos influenciados por esse fator. Claro que, como primeiro país a implantar o Socialismo em larga escala, os soviéticos tinham muito que nos ensinar, e por isso mesmo eu viera estudar na Escola Leninista. Mas isso não lhes dava o direito de tratar a todos com aquele nível de condescendência.

Mordi a língua, contudo, e tentei controlar a minha cara para não revelar meus pensamentos, pois sabia que não teria nenhuma utilidade expressá-los no momento, e provavelmente apenas pioraria minha situação.

Poucas broncas – "conselhos" – depois, e eles finalmente saíram para deliberar minha punição. As palmas das minhas mãos estavam escorregadias de suor frio, e meu coração tinha entalado na garganta, mal deixando espaço para eu respirar. Advertência... suspensão... expulsão... "Não chore, você não vai chorar. Qualquer que seja o veredito, vai encará-lo com dignidade" eu me adverti. "E depois, no Brasil... bem, vou ter muito tempo durante a viagem para pensar", completei, encarando meu próprio colo, desconsolada.

– Shedritcheva – chamaram, da porta, e eu virei o rosto para lá. O Tenente Astrakhanov continuava de pé ali, e me fitava com um misto de raiva e pena.

– Hm? – fiz, não confiando em mim o suficiente para abrir a boca.

– Não é costume expulsar alguém na primeira infração – ele disse apenas, sem olhar para mim. Acenei que compreendia e agradeci mentalmente pela tentativa de me tranquilizar, mesmo que não tivesse funcionado.

Tabanov, Jim Adams e os outros voltaram para a sala e tomaram lugar à mesa novamente. Tabanov ficou de pé e pigarreou.

– Decidimos que, considerando seus bons antecedentes, que apenas contam com dois pequenos atrasos matinais, um pouco de crítica e autocrítica será suficiente para a solução desse caso – ele declarou.

Olhei-o com ar confuso; já tinha ouvido falar desse método de correção, mas minha cabeça não estava associando nada muito bem no momento. Além do nervosismo, havia uma pontinha de ressaca, não se pode esquecer.

– O método de crítica e autocrítica é aplicado por todo o partido bolchevique, não só aqui. É a melhor maneira, você não concorda? Dar à pessoa a oportunidade de refletir sobre seus erros e renunciar a eles, antes de partir para medidas mais severas. Afinal, somos todos seres racionais aqui e cada um sabe o que é melhor para si – Tabanov explanou.

– Mas em que consiste? O que eu tenho que fazer? – perguntei, quando a explicação que eu estava esperando não veio.

– A primeira parte já foi feita por nós. Você escutou todas as provas contra você, os testemunhos desabonando seu comportamento, e nossos esclarecimentos a respeito de por que esses comportamentos são prejudiciais, não só a você, mas também à sociedade. Pois bem, você deve refletir em tudo o que lhe foi dito, analisar seu próprio comportamento da perspectiva dos valores do comunismo, e daqui a dois dias, deverá nos entregar um relatório escrito, apontando seus erros, o que os causou, e como poderá corrigi-los daqui por diante.

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now