Capítulo 14 - Siglas Soviéticas

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Ri internamente ao imaginar a cara da Major Bruntieva se me visse ali me preocupando com aquelas vaidades

Apesar de ter dito que não ia comprar nada, Lucia acabou se encantando por um lenço, e Vania se aproximou de nós com uma gravata vermelha na mão, enquanto nos dirigíamos ao balcão, mais especificamente para a moça que estava quase dormindo.

Pegando as compras em silêncio, ela as embalou separadamente com cuidado, antes de finalmente nos dirigir a palavra:

– Forma de pagamento? – questionou. Eu tirei minha carteira do bolso e ia extraindo dela os rublos da mesada que recebia do Partido, quando Lucia segurou meu pulso. – Forma de pagamento? – repetiu a mulher, impaciente. – Ouro, prata, pedras preciosas, dinheiro estrangeiro? Andem logo, não tenho o dia todo.

Ela provavelmente tinha, porque a toda evidência, o movimento não era muito intenso naquela loja, mas não pensei em discutir isso no momento. Estranhei as opções dadas, afinal, os preços estavam em rublos. Só então eu reparei que a etiqueta continha a indicação "rublos da Torgsin". Uma moeda específica da loja? Que coisa esquisita! Foi quando percebi que Lucia estava me puxando discretamente para trás da prateleira central, indicando que queria dar uma palavrinha. Segui-a, enquanto as compras ficavam no balcão e Vania entretinha a vendedora, oferecendo seu lindo sorriso grato ou um par de beijinhos como alternativa às formas de pagamento por ela listadas.

– Escute, será que você não poderia pagar por nós? – Lucia pediu, com cara de cachorro caído da mudança. – Nós te pagamos de volta, com juros, só que aqui eles não aceitam rublos regulares.

Encarei-a com surpresa. Então era por isso que elas me convidaram para vir junto! Juravam que eu tinha dinheiro estrangeiro. Senti-me francamente usada, e devo ter demonstrado isso na carranca, porque as garotas murcharam de imediato.

– Por favor, não fique brava! Eu disse a Lucia para não virmos aqui – Sveta lamentou-se, fazendo cara feia para a amiga – que não tinha necessidade. Mas quando essa e o Vania se juntam em alguma ideia, você não tira da cabeça deles nem na base de surra. Vamos, vamos embora, podemos achar coisas legais nas lojas comuns... – e ela tentou nos puxar para a saída, mas nós baixinhas fincamos pé.

– Não tão legais quanto o que tem aqui – Lucia teimou. Não consegui evitar virar os olhos. Aquele pensamento de "o que é importado é sempre melhor"... parecia que eu estava vendo uma brasileira na minha frente, agora. – Vamos ficar iguais a todas as outras, se comprarmos nas lojas comuns, não vamos nos destacar – e, voltando-se para mim, Lucia adicionou – Não precisa ficar com medo, nós pagamos parcelado, mas pagamos – garantiu. – Veja, vamos fazer um papel com a promessa de pagamento, e você pode levar na polícia se não receber no prazo – propôs, abrindo sua bolsa e tirando de lá um caderninho, do qual rasgou uma folha. Eu segurei o pulso dela, balançando a cabeça.

– Me chamo Elizavieta Shedritcheva e vim de Odessa – eu disse, olhando enfaticamente para as duas garotas, tentando deixar claro que, para todos os efeitos públicos, eu era soviética e pronto. – Não sei onde eu poderia ter conseguido moeda estrangeira.

– Ué, muitos dos nossos também tiram moeda estrangeira sabe-se lá de onde – disse Ivan, que tinha se aproximado ante a nossa demora, dando de ombros. – Ninguém se importa com isso, desde que no fim você entregue pra eles – ele falou, meneando a cabeça para trás, indicando as pessoas no balcão.

– Essa é a própria ideia do Torgsin – apoiou Lucia.

Suspirei. Eu nem sabia se ainda tinha dólares que sobraram da viagem, ou se os trouxera comigo. Pensei seriamente na proposta de Sveta de procurar o que precisava em outro lugar, mas eu tinha mesmo gostado daquele vestido. Olhei para Lucia com o canto dos olhos estreitados.

– Tem certeza que eles não vão pedir documentos?

– Absoluta!

Remexendo na bolsa, abri a carteira, e encontrei meus últimos vinte dólares amassadinhos lá no fundo. Sorte que eu nunca tirava nada da carteira ou da bolsa. Voltando para o balcão, de onde a mulher já nos encarava com ar desconfiado, entreguei dez dólares para ela, que me deu vinte rublos Torgsin em troca, com os quais eu paguei as nossas compras, e ainda me sobraram um rublo e meio.

Nesse meio tempo, apesar de eu dizer que não precisava, Lucia tinha feito o seu contratinho, e meus olhos se arregalaram ao ver o quanto eles agora me deviam. Em rublos regulares, aqueles produtos eram um luxo quase injustificável, e eles iam ter que trabalhar um bocado para me restituir o preço.

Bom, pelo menos eu tinha uma renda extra garantida por certo tempo.

Deixamos a Torgsin logo em seguida, rumo à Praça da Revolução, para continuar nosso passeio, e, ao sair, eu dei uma espiada no nome da loja, entendendo finalmente que aquilo era abreviação de "torgóvlia s inostrantsami", comércio com estrangeiros.

Definitivamente não teria caído na armadilha se tivesse lido isso antes.

Mas você precisa de meia vida para aprender russo direito, mais uma metade para entender as abreviaturas soviéticas, e quanto a compreender plenamente todos os órgãos e cargos e instituições a que elas se referem, bem, desista.

Nem que você fosse um gato, com sete vidas para gastar.

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now