Capítulo 13 - A canção da cripta

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– Boa notícia para você, a correspondência nacional não obedece ao limite semanal – disse nosso supervisor, com um sorriso, apagando a luz da sala, antes de sairmos. – Têm que ser igualmente revisada, mas em russo o trabalho é muito mais fácil, e também menor, já que não há grande demanda dessas cartas. Você pode enviar uma cada vez que sair correio.

Fiquei com uma vontade enorme de abraçar Astrakhanov em gratidão, mas sabia que ele provavelmente ia estranhar a atitude, então me contive, e apenas agradeci polidamente.

– Sem problemas – ele respondeu. – Só cuidado com o que vai escrever. Não coloque nada muito íntimo, lembre-se que eu vou ler tudo. Evitemos constrangimentos – acrescentou com a cara séria, mas um brilho divertido no olhar, que denunciava a brincadeira. Eu apenas revirei os olhos para a insinuação, e segui andando na frente dele.

A ideia de ser namorada de Pavel não chegava a me desagradar, mas também não correspondia à realidade atual. Eu, na verdade, nem sabia qual era a realidade atual, já que havia mais de mês que não tinha notícias dele. A toda evidência podia ter me esquecido, dada a brevidade de nossa relação. Ele disse que também sentiria saudades, mas... podia muito bem estar apenas sendo gentil.

Se bem que, do que eu conhecera dos russos até o momento, eles não faziam tanta questão de serem gentis. Ou antes, a gentileza deles assumia outra forma; não era a polidez de maneiras a que eu estava acostumada no Brasil; as maneiras dos soviéticos eram, em geral, francas e bruscas, mas se revestiam de uma prontidão e presteza para ajudar verdadeiramente agradáveis.

Naquela mesma noite, redigi a carta e entreguei-a a Astrakhanov, junto com os dados que eu tinha de Pavel para a busca de antecedentes. Dali em diante, o tenente tomaria conta, e eu só tinha que aguardar para ver se, algum dia, receberia uma resposta, ou se a demora tinha sido tanta que ele já me odiava e não responderia. Ou ainda, se não responderia porque seu encontro comigo era apenas parte dos meus testes de admissão, e ele não tinha realmente nenhuma intenção de continuar o contato.

Apesar dessas dúvidas me pesarem no coração, não foi difícil escrever de maneira bem neutra e superficial, de modo a não infringir as regras da escola, afinal, essa seria a primeira carta que trocávamos e eu não fazia ideia se aquela maravilhosa intimidade das primeiras conversas se repetiria na comunicação escrita. Ou em novos encontros.

Tinha sido mesmo uma experiência sui generis.

Depois de me desincumbir da epístola, ainda fiquei um tempo acordada adiantando tarefas, para poder passear na tarde de segunda-feira, sem preocupações. Tudo já estava quase ajustado para a participação da Escola Leninista Internacional (ou ELI, como eu e os outros brasileiros a havíamos apelidado) nas festividades. Um aluno veterano ia discursar, na hora dos pronunciamentos, um rapaz do setor alemão, mas iria como representante do Partido Comunista da URSS, sem tocar no nome da escola. O que não nos impedia de torcer por ele e nos sentirmos representados. Não faríamos apresentações separadas, pois chamar a atenção para nós violaria a política do sigilo, mas marcharíamos junto com a delegação da Juventude Comunista Internacional no desfile.

Antes de dormir, rascunhei alguns cartazes que faltavam para o nosso setor, e entreguei os esboços para outro camarada do comitê. Eles confeccionariam as versões completas amanhã, e eu viria ajudá-los após voltar do passeio no centro. A parte boa de fazer as coisas em comissões ou comitês ou conselhos era essa, não ter que cuidar de tudo sozinho. Eu tinha certeza que, se dependesse só de mim, nossa participação, mesmo modesta, teria saído um fiasco.

Assim, foi com a sensação de liberdade que apenas o dever cumprido proporciona que eu cheguei à Praça Vermelha no dia seguinte. Tinha estado ali apenas de passagem anteriormente, e, em vez de ir direto procurar meus cicerones, não consegui me esquivar do desejo de explorar o local, aproveitando que estava um pouco adiantada.

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now