Capítulo 6 - A caminho de Moscou

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– Interessante, mas construção não parece ter muito a ver com... – eu ia comentando, mas mordi a língua para me conter. Agora eu era tão importante que tinha direito a escolher que setor ligado ao Partido iria me recepcionar?

– Com recepção de camaradas estrangeiros? – ele adivinhou o fim da minha fala. – Digamos que isso é um extra. Acontece que eu falo português e espanhol, e isso não é comum de se encontrar por aqui, então sempre que alguém vem da América do Sul via Leningrado, fico encarregado de zelar por ele enquanto está na cidade e encaminhá-lo a Moscou com as instruções seguintes – explicou.

O fato de que, além de português, ele falava espanhol me deixou um tanto surpresa. O Camarada Ióssif era alto, fortão, tinha o tipo de aparência que você associaria fácil a um trabalhador de construção, estivador ou esportista, mas não a um intelectual. Será que dois enganos já eram o suficiente para eu parar de rotular as pessoas ali pela aparência, ou eu precisaria de mais umas liçõezinhas?

– E por falar em instruções seguintes – emendou Ióssif, assumindo agora uma postura de seriedade – ao chegar à estação, você deve procurar um casal de norte-americanos, Sr. James Adams e Srta. Carolina Johnson. Eles também foram enviados para treinamento e vocês viajarão juntos – informou, me entregando a passagem. – Na capital, vocês devem se apresentar ao Departamento de Organização do Comitê Executivo da Internacional Comunista, que providenciará os encaminhamentos posteriores. É possível que alguém venha buscá-los para levá-los ao Comitê, mas não é certeza, então anote o endereço: Rua Vozdvijenka 1, esquina com a Rua Mokhovaia. É fácil chegar lá, fica nas proximidades da Praça Vermelha. Isso é tudo que eu sei – concluiu Ióssif, levantando. – Nosso contato, por ora, termina aqui. Prazer em conhecê-la, Camarada Linhares; nos encontraremos novamente no Rio de Janeiro. O velho Ostap não conseguiu, mas eu irei para lá sem falta – afirmou, com uma nova gargalhada, apertando minha mão com ambas as suas. – Ah, as praias, as garotas, o samba...

Arqueando minha sobrancelha para aqueles gostos um tanto burgueses – especialmente a parte sobre "as garotas" – despedi-me com cortesia, peguei minha mala no andar de baixo, e parti. Tive certa dificuldade em chegar sem a ajuda de Pavel à delegacia em que tinha me registrado; eu não estava prestando muita atenção ao que fazia, na ocasião, simplesmente me deixava conduzir, e meu senso de direção não é dos melhores. Assim, quase todo o meu tempo livre foi consumido nessa tarefa e, após um rápido lanche, cheguei à Estação de Moscou pouco antes do relógio bater meio dia.

Corri pela plataforma, atrapalhando-me com a minha mala e enroscando-a nas minhas próprias pernas, mas consegui não cair. Uma vez dentro do meu vagão, ofegante, mas aliviada por não ter perdido o trem, usei de mais calma ao procurar minha cabine.

Um rapaz e uma moça, aparentando serem bem jovens, ocupavam o banco à esquerda da porta. Mais ou menos da minha altura, a moça, bastante cheinha, ambos tinham olhos e cabelos escuros, apesar da pele clara, e destoavam, de modo geral, da aparência dos russos. Os norte-americanos, claro. Tinha até esquecido deles.

– Boa tarde, camaradas – eu me adiantei para eles com a mão direita estendida. Cumprimentei-os em inglês, língua que havia aprendido na escola de normalistas, assim como francês e latim. Quem sabe assim eles simpatizavam comigo e perdoavam-me o atraso?

Os dois ergueram os olhos para mim, e levantaram para me cumprimentar. O rapaz permaneceu de pé um instante para me ajudar com a mala.

– Você é a Camarada Linhares? – ele perguntou, e eu confirmei. – Desculpe não termos te esperado, estávamos lá fora aguardando, mas então soou a última chamada e achamos melhor entrar.

– Achamos que não viria mais – completou a moça. – De qualquer forma, não teríamos te reconhecido, estávamos esperando um homem. Nos passaram as ordens em inglês – ela explicou, encolhendo os ombros, quando eu lancei um olhar espantado. Claro; numa língua sem gênero e num mundo protagonizado pelos homens, esse tipo de mal-entendido era compreensível.

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