Capítulo 4 - Jantar com os Solinin

Start from the beginning
                                    

– Olá, Yulia Mikhailovna. Mamãe... – ele se voltou para a senhora loura, seu olhar se demorando um instante na panela. Resolvendo não perguntar nada, me apresentou – Essa é a Masha, isto é, a Camarada Maria Linhares, que veio do Brasil e está de passagem para Moscou. Falei dela ontem. Esta é minha mãe, Anna Anatolievna.

Eu me adiantei para a senhora, que lançou um olhar aprovador ao lenço que me envolvia os cabelos.

– Muito prazer, Anna Anatolievna. E muito, muito obrigada pelo lenço. Salvou minha vida hoje – eu disse, apertando-lhe a mão efusivamente.

– Não é pra tanto, apenas lhe impediu de pegar um resfriado – corrigiu a mulher, presenteando-me com um sorriso simpático, no entanto. Apenas dois dias ali e eu já tinha percebido que os russos não eram muito fãs de exageros no trato cotidiano. – Mas vamos para a sala, o jantar está quase pronto, lá poderemos conversar melhor – ela falou, lançando um olhar hostil para a tal Yulia Mikhailovna e colocando uma mão no meu ombro para me dirigir ao local indicado.

Na sala em questão ficava o centro da vida da família, com uma mesa de quatro lugares, um divã e uma poltrona. A parede maior era decorada com um tapete pendurado, ao lado do qual uma porta de comunicação entreaberta conduzia ao quarto de dormir. Num canto havia um ícone, ladeado por uma estante com livros e pequenos bibelôs, perto do divã, e, na parede em frente à tapeçaria, os rostos de Marx, Lenin e Stálin se destacavam em desenho, em meio a alguns retratos de família. Andriusha, o menino que havíamos encontrado naquela tarde, estava sentado à mesa, em meio a cadernos abertos e um prato de sopa vermelho escura, que ele estava terminando de tomar. Ele me cumprimentou com familiaridade, e eu respondi no mesmo tom.

– Vocês pegaram chuva, meu filho? Tirem esses casacos. O lenço molhou, querida? – perguntou Anna Anatolievna, tocando o acessório. – Dê-me aqui ele também, e o seu quepe, Pasha, vou deixá-los secando perto do fogão.

Com a panela na mão e nossas roupas no braço, a mãe de Pavel voltou ao vestíbulo para acessar a cozinha, e meu amigo apontou a estante de livros, numa lembrança da promessa de me emprestar material de leitura. Nos aproximamos para olhar os títulos, e só então eu notei um senhor que estava na poltrona, de costas para o lado de onde tínhamos vindo, e lia um jornal com atenção. Ele era calvo, com um denso bigode grisalho, mas a magreza e os olhos cinzentos atrás dos óculos denunciavam a semelhança com o filho. Nem deu pela nossa chegada, apesar de que devia estar cuidando da menininha loura sentada no chão perto dos seus pés, brincando com uma girafa de madeira.

Pavel fez uma festinha nos cabelos da irmã e pegou-a no colo, só assim atraindo a atenção do Sr. Ivan Petrovitch, a quem me apresentou. Este me fez um par de perguntas por educação e voltou para o seu jornal. Tive muita vontade de saber o que ele estava lendo, que parecia tão importante, mas, sem querer ser indiscreta – mais do que eu já vinha sendo até ali – virei-me para a estante e passei a examinar os títulos.

"O Manifesto Comunista", "O Capital", "A situação dos trabalhadores na Inglaterra do Século XIX", outros livros de doutrina... "Que fazer?", do Tchernichevski... Górki, Sholokhov... Um ou outro clássico russo de que eu já tinha ouvido falar... e "Jazz-band e a música contemporânea", de Semion Ginzburg?

Ergui as sobrancelhas para Pavel, numa careta bem-humorada. Ainda embalando a garotinha, ele precisou olhar para a estante para entender o que causara meu espanto, e então sorriu.

– Sim, é meu – confirmou. Encolheu os ombros. – Vou estudando por conta própria.

Acenei aprovação, continuando a olhar os livros.

– Você gosta de jazz? – ele me perguntou. Foi a minha vez de encolher os ombros.

– Em termos de música eu meio que escuto o que estiver tocando. Mas gosto de canções populares ou patrióticas – acrescentei.

Dias VermelhosWhere stories live. Discover now