Capítulo 2 - Pavel

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Meus olhos voltaram para os cartazes, e para os muros em que eles estavam colados. Alternando com as paredes descascadas de prédios antigos, era inúmera a quantidade de tapumes de madeira que cercavam canteiros de obra, fora as construções que estavam em andamento no meio das ruas. De fato, em diversos pontos da cidade havia algumas pessoas cavando estreitas valas em meio ao calçamento. Apontei um desses agrupamentos para o Camarada Solinin, perguntando do que se tratava.

– Estão construindo as linhas do bonde – ele explicou. – Para dar uma aliviada nisso aqui – e indicou com o queixo a lotação à nossa volta.

– Acho que nunca vi tanta construção num lugar só – eu comentei, ainda encarando os tapumes, com espanto. Pela primeira vez na minha presença, o Camarada Solinin abriu um sorriso, e não pude deixar de reparar em como os dentes dele eram perfeitos e alinhados.

– Cinco anos em quatro – ele citou, à guisa de explicação. Ao ver que eu não reconhecia o slogan, explicou – O Camarada Stalin e o pessoal do Partido têm insistido para que a gente conclua o Plano Quinquenal antes do prazo final, e, bem, este é o quarto ano desde o último plano, então estamos numa corrida contra o tempo para atingir o objetivo. Praticamente todo mundo trabalha na construção civil, inclusive eu.

Não consegui evitar um olhar meio espantado para os braços finos dele, me perguntando como eles não quebravam, ao imaginar aquele rapaz carregando pedras. Bem, fraco ele não era – cogitei, quando meus olhos bateram na minha própria mala, que ele vinha carregando sem problemas havia algum tempo, apesar de estar consideravelmente pesada.

– Não tem muitos prédios no seu país, não é? – ouvi-o perguntar em seguida. Aparentemente, com a minha iniciativa, ele também decidira dar vazão à própria curiosidade. Observava-me com atenção. Eu devolvi o olhar e adivinhei exatamente o que ele estava pensando.

– Não, nós moramos em cabanas de palha cercados por selva. Que pena que eu me esqueci de trazer meu macaco de estimação, você iria adorá-lo – eu respondi, com indisfarçável ironia, mas um sorriso simpático para amenizar o corte. O rapaz avermelhou, fechando o rosto novamente, constrangido.

– Desculpe, foi uma pergunta tola.

Soltei uma sonora gargalhada, que fez algumas pessoas no ônibus olharem para mim com espanto.

– Não tem problema, estou só brincando – eu tranquilizei Solinin, dando-lhe um leve empurrão no ombro, numa intimidade que ele pareceu estranhar, mas não reclamou. – O Brasil fica muito longe, é normal vocês terem uma visão meio mítica do que existe por lá. E há macacos mesmo, embora eu nunca tenha visto um pessoalmente.

O resto da curta viagem até a delegacia foi gasto com eu contando para ele algumas coisas básicas sobre o meu país, a língua, o povo. Meu relato foi interrompido quando chegamos à delegacia. Por causa da minha credencial do partido, com carimbo da Internacional, e provavelmente por estar acompanhada de um komsomolets, foi bem tranquilo fazer meu registro em Leningrado. Dali, rumamos a pé para meu hotel, uma pensãozinha que ficava relativamente perto do posto policial.

– Costumavam tratar melhor os estrangeiros uns dez anos atrás... – Pavel (que, depois de quebrado o gelo, tinha me dito para chama-lo pelo primeiro nome) comentou em tom de desculpas, ao ver as instalações um tanto quanto precárias em que eu deveria me apertar temporariamente, junto com outras sete moças que já habitavam ali.

"A cavalo dado não se olham os dentes", eu pensei, e tentei arranjar um modo de traduzir essa expressão para o meu guia, enquanto ele me ajudava a colocar a mala embaixo da cama de molas. Afinal, o Partido estava pagando minha manutenção e meu treinamento, e eu não era nenhuma burguesinha para ficar reclamando de conforto. Assegurando-se de que eu receberia alimentação na pensão também, Pavel se preparou para partir.

– Você sabe qual é sua missão aqui? – ele questionou.

– Missão? Até onde eu sei, não tenho uma específica. Eu vim apenas receber formação ideológica e estudar como vocês realizam o socialismo por aqui, para saber implantá-lo em meu país quando tivermos oportunidade – eu respondi, na defensiva, um pouco alarmada, porque não tinham me falado de missão nenhuma, e eu não sabia que precisava de uma.

O Camarada Solinin assentiu.

– Amanhã vou te levar para o meu dirigente, então, talvez ele tenha recebido alguma instrução a seu respeito, porque as minhas acabaram – com outro sorriso, ele mostrou o papel que consultara mais cedo, que de um lado continha meu nome, e do outro, algumas linhas com ordens.

Foi a minha vez de assentir. Despedi-me de Pavel e me ajeitei na cama para descansar, um pouco triste com a perspectiva de que o meu contato com ele acabasse tão cedo. Mas eu havia de superar, afinal de contas, estava ali pelo meu Partido e pela minha nação, e não para ficar me enamorando dos komsomoltsi bonitinhos que cruzassem o meu caminho.

***

Notas:

Da... eto ya - Sim... Sou eu.

Kak vas zovut? - Como o senhor se chama?

Komsomolets - Rapaz da Juventude Comunista. Plural: komsomoltsi.



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