O incêndio da casa ao lado

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27 de Agosto de 1999, Sheffield, South Yorkshire – UK


No intervalo entre uma música e outra, Alex ouviu os passos pesados de seu pai no corredor em frente ao seu quarto, ele parecia apressado. Tratou de livrar-se do headphone e escondê-lo junto ao Discman sob seu cobertor, temendo ser flagrado ainda acordado. Logo que ouviu a mãe percorrer o mesmo caminho, o garoto saltou de sua cama. Com a cabeça para fora do quarto, ouviu quando a porta de casa bateu. Levou pouco tempo até dar-se conta da movimentação estranha na rua. 

Através da janela, seus olhos assustados encontraram em chamas uma das casas do quarteirão. Os vizinhos todos se reuniam para observar os bombeiros. Alex pensou que eles gritavam mais do que trabalhavam. "Afastem, afastem, afastem", era o que diziam, distraindo-se do objetivo principal – apagar o fogo que parecia cada vez mais intenso.

Depois dos primeiros minutos de horror, saiu de casa para encontrar-se com os pais, do lado de fora. Stella, sua mãe, pediu que ele entrasse, daquele jeito automático que mães fazem. Ele ficou.


Ninguém parecia comovido, Alex considerou. Não verdadeiramente comovidos. Talvez porque fossem vizinhos novos e ninguém os conhecesse ainda. Talvez porque não os afetava diretamente, afinal, não era a casa de nenhum deles.


A equipe de bombeiros finalmente conseguiu organizá-los em uma linha reta do outro lado da rua, longe o suficiente para que deixassem de correr perigo. Logo ao lado de sua família, estavam os vizinhos novos – um casal de jovens e uma menina, Alex pensou que ela deveria ter sua idade, mas estranhou que seus pais parecessem mais novos que os dele.

Os três choravam, ignorando as palavras vazias de senhora Harrison – a mais antiga moradora do bairro, uma mulher que era rica e arrogante na mesma proporção.

Alex observou o rosto lívido da menina e, movido por aquela empatia que aparentemente nasceu com ele, acercou-se alguns passos. Depois mais alguns. Ouvia a mãe sussurrar pra que voltasse, temendo que sua aproximação fosse indelicada, quando o indelicado, na opinião do menino, era não estar ao lado daquelas pessoas, enquanto elas assistiam uma grande parte de suas vidas ser devorada pelo fogo.



- Oi... – Ele disparou para a garota. Os olhos dela, brilhando em lágrimas, refletiam as chamas, depois, aos poucos, o rosto de Alex – Meu nome é Alex .
- Alex , venha... – A mãe chamou, dessa vez mais dura – Sinto muito, sinto muito mesmo! – Disse aos vizinhos, puxando-o menino pelo braço – Sou Stella, aquele é meu marido Robert, esse é Alex , moramos naquela casa logo ai... Se precisarem de qualquer coisa, por favor, nos deixem saber. O que estiver em nosso alcance, iremos ajudar.
- Obrigado. – Agradeceu o homem, de um jeito claramente automático.
- Anna, por que não vai brincar com o Alex ? – Sugeriu Martha, a mãe da menina, as mãos apoiadas nos ombros miúdos da filha.
- Eu não quero brincar... – Anna soou contrariada.
- Quer ir pra casa, Anna? – Stella sugeriu – Alex faz um chocolate quente delicioso.
- Vai, filha... Nós te chamamos assim que dermos um jeito em tudo...
- O que vamos fazer depois? – Anna perguntou, Martha e Lucian pensaram que aquela nunca deveria ser a preocupação de uma criança de 11 anos.
- Não pense nisso, meu amor... – Martha pediu, suas mãos maternais tocando o rosto choroso de Anna – Eu e papai vamos resolver!


Alex foi andando ao lado da menina, e parou a mesma quantidade de vezes que ela o fez, hesitando deixar pra trás sua família e o desastre que também a envolvia. Pacientemente esperou que ela decidisse voltar a andar, até chegarem em casa. 


- Senta aqui... – Alex apontou para a poltrona reclinável de seu pai, sempre se sentia confortável nela e achou que Anna também poderia – Eu já venho.


Voltou de seu quarto com o Discman. Ele, junto ao CD do "White Album" dos Beatles, que seu tio havia gravado para lhe dar de aniversário, vinham sendo uma grande companhia para aquela solidão costumeira. Desejou que pudessem oferecer à Anna o mesmo amparo. 

Trouxe, pouco depois, o chocolate quente que Stella havia lhe ensinado a fazer quando completou dez anos. "Agora já tem idade pra isso", ela disse. Mas a verdade é que há dois anos atrás ainda trabalhava como enfermeira plantonista, e nunca conseguia colocá-lo na cama – O boa noite sempre sendo dado por telefone, sem história ou canção de ninar. Então Alex aprendeu a ler, depois a fazer seu próprio leite. 


Anna, enrolada na coberta que ele havia oferecido, escutando todas as músicas que ele havia dito serem suas favoritas, lamentou por todas as perdas daquela noite. Sabia, em algum lugar de seu coração magoado, que não era a casa que lhe importava. Teria que redescobrir muito de si mesma agora que já não teria todas as coisas que faziam dela quem era. Era assustador pensar no efeito que isso teria em seus pais, também. Temeu que eles perdessem muito mais do que os bens, que se perdessem em meio à vulnerabilidade gerada pelo infortúnio.


- Filha... – Anna, ao despertar, teve a impressão de estar dormindo há muito tempo. Pensou, por um instante muito breve, que havia sonhado com um incêndio. Mas a expressão esgotada de Martha a trouxe de volta para a realidade – Vamos?
- Pra onde vamos?
- Vamos para um hotel, e amanhã nós iremos procurar uma nova casa para morar até resolvermos tudo... – Anna concordou com a cabeça, e enquanto a mãe se levantava e se afastava junto de Stella, a menina livrou-se do headphone e desenrolou-se da coberta.
- Obrigada, Alex . – Agradeceu, estendendo o Discman na direção do menino – É um CD legal.
- Pede pra sua mãe te trazer aqui qualquer dia, eu tenho outros bem legais... – Sugeriu, Anna apenas maneou a cabeça num gesto singelo.
- Tchau, Alex .
- Tchau, Anna.


Enquanto os pais se despediam de Stella e Robert, Anna aguardou no meio fio, enrolada no casaco de seu pai que cheirava a queimado, tanto quanto seu cabelo, e todo o quarteirão. Ainda havia fumaça e curiosos por toda parte.


- Anna, espera!


Anna parou de andar primeiro que os pais. Esperaram até que Alex os alcançasse. Havia um sorriso gentil e constrangido em seu rosto quando estendeu um CD, a capa do álbum branco visivelmente feita em casa.

Quando chegou no hotel, Anna queria ouvi-lo outra vez. Não só porque tinha gostado das músicas, mas porque, de alguma maneira, fazia com que se lembrasse de Alex , e essa era sua única boa lembrança daquela noite.

O telefone dele estava anotado em um pedaço de papel verde dentro da caixa acrílica, Anna se perguntou se algum dia teria coragem de ligar.

Ela teve.   

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