O primeiro ataque

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Acordei com o meu estômago às voltas. Como era possível que tivesse tanta fome?! Levantei-me gentilmente da cama, para não acordar o meu amigo, e dirigi-me à cozinha. Abri o nosso frigorífico e fiquei satisfeita ao verificar que estava cheio. Optei por bacon para saciar a minha fome selvagem. Tirei um prato da máquina da louça, que tinha estado a lavar os pratos (talvez por falta de tempo da nossa parte para o fazer) e comi o bacon sem antes o fritar. Estava com tanta come que até carne crua era capaz de comer.
Brian e eu tínhamos estado bastante ocupados nas últimas semanas. Sim, finalmente pertencia a algum lugar. Sebastian tinha-me adorado, e garantiu-me um lugar na sua alcateia. Foi o dia mais feliz da minha vida. Não tinha que me esconder mais do mundo inteiro. Podia vingar a morte da irmã de Brian, juntando-me a ele para no futuro combater contra a Alcateia Maior, que se queria apoderar de toda a cidade e viver segundo as suas próprias regras. Era um risco, porque Thomas podia aparecer, mas ele tinha feito a sua escolha, e era ele ou eu.
Enquanto estava envolta nos meus pensamentos, mais a dormir do que a pensar, apercebi-me que Brian me observava encostado à ombreira da porta. Devia ter feito muito barulho...
-Foste comer sem mim?
Ri-me, como já era habitual quando estava com ele.
-Desculpa. Fiquei cansada por causa dos treinos e talvez não tenha comido o suficiente.
Brian puxou uma cadeira e sentou-se à minha frente. Esticou o braço e tirou uma fatia de bacon do meu prato. Quando viu que não estava cozinhada, disse:
-Ugh, Jo! Como é que consegues comer isto assim?
Brian olhava horrorizado para a fatia de bacon que segurava entre o seu polegar e indicador em frente ao seu rosto, no entanto, enfiou-a de uma só vez na boca.
-Acho que precisamos de arranjar uma casa maior.
Fiquei surpreendida com a sugestão. Sempre pensei que não era desejada naquele lugar, que só ocupava espaço, mas afinal Brian queria que continuássemos a partilhar a mesma casa.
-Estás a falar a sério?
Brian sorriu, como sempre, e assumi que esse gesto significava que sim.
Nessa manhã, andámos a ver casas que não estavam habitadas e encontrámos uma à nossa medida: era barata; tinha dois andares (o que era considerado um luxo naquela alcateia); tinha quatro quartos, uma cozinha, uma sala, três quartos de banho, um sótão e um escritório, e ainda tinha um jardim que dava para a parte principal da casa. Brian e eu apaixonámo-nos por ela no primeiro instante em que a vimos e decidimos tratar logo da compra. Íamos começar a empacotar as nossas coisas (as minhas não eram muitas, já que eu tinha ido para a minha nova alcateia com apenas uma mochila) nessa tarde e dentro de uma semana já estaríamos a viver na nossa nova casa, cada um com o seu respetivo quarto. Estava a começar do zero, ia viver uma nova vida com um grande amigo que me era fiel e podia ser feliz, sem pensar em Peter ou na família que deixei para trás. Já pertencia a um novo lugar, e se me voltasse a ligar a pessoas do meu passado podia arruinar tudo simplesmente.

Passadas duas semanas, Brian e eu estávamos bem instalados numa casa rodeada de outras semelhantes. Tinha vizinhos amáveis e simpáticos, que estavam sempre dispostos a ajudarem-nos se precisássemos de algo. Estava a adorar aquela nova vida. Tinha conhecido uma rapariga à qual me apeguei bastante: Autumn. Era uma rapariga com uma personalidade bem vincada, tal como eu, no entanto, possuía uma beleza natural, coisa que eu já não podia ter em comum com ela, segundo a minha opinião. Autumn nem era alta nem baixa, magra, mas com curvas, como eu, e tinha um rosto simplesmente belo: olhos grandes, de um castanho dourado, com grandes pestanas negras, tinha um nariz perfeito e arrebitado e labios vermelhos grossos nem muitos grandes nem pequenos. O cabelo castanho ondulado com algumas nuances douradas modelava-lhe o rosto em forma de coração. Tinha conhecido Autumn num dia de mudanças, em que nem eu nem Brian conseguíamos transportar uma enorme cómoda de madeira para dentro da nossa nova casa. Autumn, que vivia nos arredores da nossa casa, estava a passear com o namorado quando nos viu a rir às gargalhadas enquanto tentávamos a todo o custo dar um passo em frente com a cómoda. Autumn tinha parado com o namorado para nos ver. Ela dizia que éramos perfeitos um para o outro, que nos complementávamos em todos os sentidos, mas eu não partilhava da mesma opinião. Com o tempo, pude perceber que Autumn era uma rapariga com um sentido humor negro, adorava ser irónica e odiava tudo o que fosse irrealista, era uma jovem prática que não suportava gente inútil e que só ligasse a futilidades.
-Jo!- ouvi Autumn chamar-me naquela manhã, enquanto penteava o meu cabelo molhado em frente ao espelho do meu novo quarto que tinha só para mim.
Abri as portas da varanda do meu quarto e saí para fora. Olhei para baixo e vi Autumn com um ar afogueado.
-Que se passa?- perguntei.
-Posso subir?
-Claro.
Passados alguns segundos, Autumn estava sentada em cima da minha cama, como se fosse o quarto dela, a falar do que ouvira no E.T.
-Eu estava a acabar de tomar banho, depois do meu treino da manhã, quando ouvi a minha treinadora a conversar com outra que não conheço sobre uma ameaça de ataque.
Fiquei espantada. Tudo parecia calmo. Por que razão haveria guerra? Talvez fosse falso alarme.
-Por parte de quem?- perguntei.
-Não vais acreditar...
Autumn baixou os olhos para o seu colo, como se lhe estivesse a dar uma reprimenda.
-Diz de uma vez por todas!
-Da Arvoredos. Não sei a causa, mas...
Deixei de ouvir qualquer palavra dita pela minha nova amiga. Eu não podia estar em guerra com a alcateia onde tinha nascido. A Arvoredos e a Poder sempre tinham sido aliadas, era muito estranho que de um momento para o outro ficassem inimigas. Autumn pareceu não notar o espanto no meu rosto, porque continuou a falar.
-E a Alcateia Maior vai associar-se à Arvoredos. Pelo menos foi o que ouvi...
Devia ter ficado mais branca que a cal. A minha sorte é que ainda não podia estar colocada para as guerras, porque só tinha tido algumas semanas de treino. No entanto, Brian ia combater, e a ideia de ele poder atacar alguém da minha família ou Thomas deu-me a volta ao estômago.
-Sentes-te bem?- Autumn perguntou, agarrando-me pelo braço.
-Acho que sim.- respondi, sentando-me ao lado dela.

Mais tarde, quando Autumn já não estava na minha casa, fiquei a pensar no que poderia acontecer. Brian apareceu com um ar fatigado enquanto eu cozinhava o nosso jantar.
-Já soubeste das novidades.- não era uma pergunta, porque era evidente pela minha expressão que eu estava preocupada.
Brian pousou as suas coisas à porta da cozinha e encostou-se ao balcão enquanto me via a fritar carne de veado.
-Vai correr tudo bem.
Os olhos escuros dele pareciam sinceros, mas sinceridade não era o que eu precisava, porque eu sabia que muita coisa podia correr mal e ele não podia melhorar a situação. Brian desconhecia a existência de Thomas, mas também não lhe quis contar nada. Só lhe dificultava a vida se lhe contasse os meus segredos.
-Sebastian convocou uma reunião para as 22h00.
Não respondi, fingindo estar muito concentrada naquela carne que parecia querer estar eternamente crua. Gritei de frustração.
-Ei, Jo, calma!- Brian rodou a minha cabeça pelo queixo para poder olhar para ele. Era incrível como o seu sorriso me acalmava...
-Esta carne não frita e nós temos que ir a uma reunião!
-Deixa estar, eu como-a crua.- piscou-me um olho e tirou dois pratos e uma faca que utilizou para cortar o pedaço de carne ao meio. Não sei porquê, mas aquele simples gesto fez-me sentir melhor e reconfortada.

Às 22h00, como combinado, Brian e eu estávamos sentados no chão, com muitos outros poderosos (o nome dado aos membros da Alcateia Poder), no pavilhão de reuniões. No centro encontrava-se Sebastian, que esperava pacientemente que toda a gente chegasse. Quando verificou que toda a gente estava presente, iniciou o seu discurso:
-Boa noite a todos.— lançou um sorriso para a multidão.—Convoquei esta reunião porque fomos ameaçados de guerra. Há alguns anos que isto não acontece e ainda desconhecemos o motivo que levou a tal coisa, mas temos que agir. Vão ser dias longos, meus amigos, e juntamente com as outras alcateias, nossas aliadas, temos que ser suficientes para combater aqueles que se querem ver livres de nós. Quando soubermos o motivo que levou a que nos decidissem atacar nesta meia-noite, convocarei uma reunião e todos saberão o motivo.
Ficámos a saber que como nossos aliados íamos ter a Alcateia Sophía (de sabedoria), e a Alcateia Fortia (de força) e contra nós iam combater a Arvoredos, a Maior e a Menor. Estava equilibrado, a Maior era muito poderosa, a Arvoredos não era má... A Sophía podia ajudar-nos a elaborar estratégias e a Fortia era boa para nos treinar, eram os melhores em combate, quase tão bons como os da Maior.
-Agora, os nomes daqueles corajosos que irão combater!—Sebastian parecia estar a anunciar uma festa enorme, porque sorria com todos os dentes (impecavelmente brancos, por sinal).
Tinha a leve impressão de que Sebastian olhava focando-se apenas em mim. Pelos vistos, não estava a imaginar coisas, porque Brian se inclinou para me sussurrar ao ouvido:
-Enfeitiçaste-o?
Ri-me discretamente enquanto sentia os olhos do belo líder postos em mim. Sebastian começou a enumerar os nomes daqueles que iam combater naquela noite por ordem alfabética. Brian constava na lista, por isso, levantou-se para se juntar à fila daqueles que eram os valentes guerreiros daquela noite. Quando Sebastian chegou aos J, fiquei admirada porque Sebastian chamou o meu nome. "Jo Bielson"... A voz do meu líder ecoava na minha cabeça. Pareceu-me que tinha passado uma hora desde o momento em que o meu nome foi anunciado até ao momento em que me levantei para me juntar a Brian. O que tinha visto Sebastian em mim? Eu era uma simples adolescente de dezassete anos inexperiente e ele só me tinha visto uma vez em ação, enquanto caçava galinhas para poder ser aceite naquela alcateia. Ao início, senti-me lisonjeada, claro, era ótimo ter sido considerada poderosa, mas posteriormente o terror dominou-me. "Thomas". Era só nele em quem conseguia pensar...
Olhei para o teto do pavilhão e só aí é que reparei que não havia uma única luz artificial a iluminar-nos. O teto era de vidro. Lua cheia. Era Lua Cheia, em poucos minutos íamos passar a lobos, nenhum lobisomem em exceção. Aquilo aterrorizou-me ainda mais. Sob a forma de lobo não estava consciente das minhas ações e não podia pensar. Era como se estivesse morta.
-Ou tu ou eu.– sussurrei para mim mesma.

Out of the WoodsWhere stories live. Discover now