Primeiro dia do último ano

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Quando cheguei à escola, tentei afastar-me logo do meu irmão para não ser conhecida como "a irmã do palhaço do ano". Eu e Jackson somos gémeos, mas a única semelhança que partilhamos deve ser a capacidade de passarmos à forma de lobo e os olhos azuis. Jackson tinha pele morena, cabelo escuro e era bastante alto. Se não fosse um autêntico palerma, seria uma perdição para qualquer rapariga. Já eu... eu sou como se costuma dizer "um pãozinho sem sal", na minha opinião. Como estava sempre a mudar de escola, nunca tinha tido a oportunidade de estabelecer grandes amizades ou relações amorosas, pelo que preferia ter todos de uma só vez. Ao início, senti-me um pouco culpada, mas depois comecei a habituar-me, até era divertido ver a cara destroçada dos rapazes que tinha traído. Quando pensavam que a relação era sólida, trocava-os por outros. Talvez tivesse medo de ficar demasiado agarrada a um rapaz quando tivesse de mudar de escola. Também era mais seguro para mim ir mudando de namorado, porque corria o risco de descobrirem o meu segredo. Não tinha amigas, apenas fiéis seguidoras que até se sentiam aliviadas quando anunciava que ia mudar de escola no ano seguinte. Acho que pensavam que era uma rapariga com demasiado poder e fama para que alguma vez pudessem vir a ser conhecidas na escola.
Este era o meu último ano, e tinha que me esforçar ao máximo para conseguir conciliar os estudos com os treinos de preparação para as guerras entre alcateias.  Aos 18 anos, todos os lobos começam a participar nas guerras entre alcateias. Quando se pensa em alcateia, pensa-se em ajuda mútua, no entanto, não é bem assim que acontece. Se és atacada por um lobo da alcateia inimiga, ninguém volta atrás para te ajudar. Tens que conseguir sobreviver pelo teu próprio mérito. Se fores valiosa, podes passar para outra alcateia, mas isso raramente acontece. Em todos os meses, os chefes das alcateias reúnem-se para discutirem aspetos importantes da floresta. É um pouco ridículo fazerem reuniões quando, muito abertamente, não se suportam. No entanto, nessas reuniões, tentam ser o mais cordiais possível. Quando alguma alcateia está interessada num membro de uma alcateia em específico, discutem a transferência, e se o lobisomem em causa quiser transferir-se, poderá fazê-lo, mas é visto como um traidor por parte da alcateia em que nasceu.

A campainha tocou. Thomas tinha-me dito que também de transferira para a minha escola e que estávamos na mesma turma. Ele era o meu único amigo, talvez por também partilharmos o mesmo segredo e por sermos da mesma alcateia.
Percorri vários corredores e acabei por me perder. Comecei a sentir um ardor nos olhos. "Por amor de Deus, Johanna, não vais chorar no teu primeiro dia!". A minha vozinha interior começou a criticar-me. Argh! Há anos que ela estava na minha cabeça a apontar todos os meus defeitos. "É para o teu próprio bem, Johanna, tu és especial.", dizia.
Choquei contra um rapaz cerca de 20cm mais alto que eu, com cabelo escuro e olhos castanhos suaves.
-Peço desculpa...
Naquele momento, qualquer pessoa podia dizer que eu era tímida, o que não correspondia à verdade. Para me amparar uma possível queda, o rapaz agarrou-me gentilmente pela parte superior dos meus braços. Sorriu, revelando um sorriso lindo, e perguntou-me se estava bem.
-Não sei onde é a minha sala... Sou nova aqui.
-És de que turma?
Respondi-lhe e ele disse-me que tinha vários amigos lá. Acompanhou-me à sala, enquanto se apresentava, dizendo que se chamava Peter e era do 12ºB. Quando chegámos à porta da sala, faltavam poucos minutos para soar o toque de tolerância. Agradeci-lhe por me ter levado à sala.
-Se precisares de alguma coisa, estou na sala 35. Podes vir ter comigo quando quiseres.
Piscou-me o olho e afastou-se, olhando-me por cima do ombro. Sorri-lhe e entrei na sala. Para meu espanto, Thomas já estava sentado numa mesa com um lugar vago a seu lado. Quando me viu, esboçou um grande sorriso e acenou-me. Deu umas palmadinhas na cadeira ao seu lado, indicando-me para me sentar ao lado dele. Ainda ofegante por me ter perdido, sentei-me na cadeira e suspirei.
-Atrasada?- sussurrou-me, com um sorriso trocista.
-Não gozes, Tommy.
Pousei a minha carteira à minha frente e tirei um pequeno caderno para apontar as coisas necessárias das primeiras aulas. Tirei também o meu pequeno estojo azul com flocos de neve e pousei-o ao lado do caderno. Peguei na carteira e perdurei-a nas costas da minha cadeira. Despi o casaco e deixei-o também pendurado. Estava um frio de congelar os pensamentos. A professora levantou-se e percorreu lentamente com o olhar todos os alunos da turma até que pararam em mim.
-Parece que temos uma aluna nova.
Thomas, no seu modo extrovertido, abanou os braços no ar para chamar a atenção:
-Também sou novo na turma!
Toda a gente começou a rir. Thomas tinha aquele dom de fazer toda a gente rir com a sua boa disposição, sem fazer um grande esforço. A própria professora também se riu.
-Já vamos a si, caro jovem. Primeiro, vamos a esta nova beleza.
Devo ter feito uma cara um pouco surpreendida, porque Thomas aproximou-se de mim e sussurrou um "Eu disse...". Devo ter ficada vermelha como um pimento, como era característico de mim mesma.
-Nome, idade, número de irmãos, disciplina favorita, passatempo preferido e o que lhe apetecer dizer- desafiou-me.
Senti todos os olhos postos em mim. Devia dar de novo a ideia de ser tímida. Para acabar com essa ideia, sacudi o meu cabelo loiro para trás e sorri e comecei a falar:
-Sou a Johanna, tenho 17 anos, tenho cinco irmãos e sempre gostei de Biologia. Nos tempos livres, gosto de andar perdida na Floresta Grey, que é perto da minha casa; e não, não tenho medo dos lobos.
No momento em que disse que gostava de estar no meio da floresta, toda a gente passou a olhar-me de maneira diferente, inclusive a professora. Não fazia a mínima ideia de que disciplina era, mas pelo cabelo curto e encaracolado, os óculos redondos e a sua estatura pequena, podia adivinhar que era professora de Inglês. De seguida, passou para Thomas, que se apresentou na sua maneira espontânea, fazendo muitos rir. Não ouvi nada do que dizia, limitei-me apenas a observá-lo: era mais ou menos da minha altura, tinha cabelo loiro arruivado com caracóis de anjo e tinha olhos azuis a fugirem para o cinzento. Sempre o tinha achado lindíssimo, mas talvez por estar sempre a dizer piadas, nunca o levavam a sério.
A professora continuou a percorrer a turma com o olhar e notou que havia outros alunos novos, cujos nomes não retive na minha cabeça. Eles falaram, mas nem me esforcei para olhar para trás e observá-los. Thomas chegou a cadeira para mais perto da minha  e perguntou:
-Que se passa? Até me admira ainda não estares a escolher a tua próxima vítima...- Thomas referia-se aos meus namoros de pouca duração.
A verdade era que Peter não me saía da cabeça. Pensei seriamente em ir ter com ele nos intervalos seguintes, mas era óbvio que a sua generosidade era apenas por pura educação. Iria fazer papel de idiota se fosse ter com ele e com os seus amigos que nem conhecia. Aqueles olhos eram tão lindos e encantadores...
Olhei para a janela e vi que nevava com grande intensidade. Estava cheia de frio, apesar de a sala ser acolhedora e ter aquecimento. A professora dirigiu-se outra vez para a sua secretária e começou a falar da disciplina:
-Para grande prazer da nossa nova aluna, Johanna,- fiquei surpreendida ao reparar que ainda se lembrava do meu nome- eu sou a vossa professora de Biologia. Como já alguns de vocês sabem, sou a professora Samantha, mas também podem chamar-me professora Sam, o que até prefiro.
Sorri. Já começava a simpatizar com aquela senhora.
A campainha tocou. Peguei na minha carteira e esperei por Thomas, e reparei que já tinha reunido um grupo de mais ou menos 6 pessoas em seu redor. Ele até parecia já ter esquecido a minha presença. Bati com o pé impacientemente no chão, mas a conversa estava demorada. Desistindo, acabei por sair da sala. Aventurei-me à procura do buffet, mas não foi muito difícil, bastou-me seguir a multidão de estudantes. Quando dei por mim, procurava por todos os cantos da escola a presença de Peter. "Ele não é para ti, Jo." Jo? Nunca ninguém me tinha chamado assim, mas até me agradava. Obrigada, voz!
Desci alguns lances de escadas e dirigi-me ao bar. Pedi um pão misto e um café. Procurei uma mesa vaga e sentei-me. Pus um pouco de açúcar no café e mexi com a colher em movimentos circulares. Estava a pensar em Thomas quando alguém parou ao meu lado. Levantei o olhar e vi Peter... de mãos dadas com uma rapariga lindíssima.
-Ah... Olá, Peter– sorri desconfortavelmente.
A rapariga que estava ao lado dele era alta, quase da altura dele, tinha cabelo castanho e olhos quase negros, bastante grandes. O rosto dela parecia de porcelana, com as suas maçãs do rosto salientes, lábios grossos (mas não exageradamente) e um nariz pequeno e arrebitado.
-Encontrei-te por acaso e sugeri à Chloe- então era esse o nome dela...- virmos aqui perguntar-te se precisavas de algo.
-Estou bem, obrigada.
Chloe parecia impaciente, atirando o seu cabelo para trás repetidamente. Reparei que a orelha direita dela era também pequena, cheia de argolas minúsculas e piercings. Tinha que admitir, mas ela tinha estilo e era extremamente bela.
-Bem... Adeus, Johanna– Chloe deu um leve puxão ao braço de Peter e afastaram-se com olhares cúmplices.
Suspirei. Como era possível que um rapaz que mal conhecia me despertasse aquela sensação incrível que sentia no meu peito? "Não sejas idiota, Jo, ele tem namorada e tu nunca o poderás ter." A sério, voz! Não podias desaparecer?! No fundo, custava-me admitir que a voz tinha razão... Eu era lobisomem e ele um simples humano. Havia grandes diferenças entre nós que nós separavam.
Vi Peter e Chloe a afastarem-se. Chloe vestia uma minissaia preta, bastante justa às pernas, um top branco que prendia no pescoço e lhe mostrava um pouco da barriga lisa e impecável e um blusão rosa claro de couro por cima. Só naquele momento reparei que ela não era assim tão alta, devia ser mais ou menos da minha altura, porque usava umas botas com uma cunha enorme. Nem sei como é que ela conseguia andar naqueles "preparos" num dia tão frio. Além de ser bonita, tinha um corpo atraente. Eu estava ali com umas calças de ganga, umas botas enormes (no entanto, quentes), uma camisola dourada com uma camisa por baixo e ainda um cachecol enorme ao pescoço. O meu casaco tinha ficado na sala. Agora que já tinha falado com Peter, sentia-me completamente perdida no meio daquela escola enorme. Para meu agrado, Thomas apareceu, com um sorriso radiante no rosto, e sentou-se na cadeira à minha frente.
-Nem vais acreditar!
-Que se passa?- perguntei, sem estar mesmo interessada na vida dele. Talvez não estivesse a ser muito boa amiga, mas naquele momento não estava com disposição para tanta alegria.
-Uma das raparigas da nossa turma, a Alexa, pediu-me o meu número!
Dei um último gole no meu café. Enquanto trincava o último pedaço que restava do meu pão, que tinha ficado esquecido por causa de Peter e da namorada, disse:
-Parabéns!
Thomas não pareceu muito feliz pela minha demonstração tão fraca de entusiasmo. Os olhos de Thomas procuraram os meus. Quando finalmente me dignei a olhar para eles, percebi que Thomas estava sério e preocupado comigo. Nem parecia o mesmo...
-Não tenho nada, Tommy, a sério– fiz o meu melhor para parecer honesta. Olhei para o relógio.– Está quase a tocar. Vamos andando para a sala?
Thomas acenou com a cabeça afirmativamente. Levantou-se e acompanhou-me. Enquanto andávamos, Thomas pôs um braço à volta dos meus ombros e em surdina disse-me:
-Johanna, o Peter não é quem tu pensas.
Apanhada de surpresa, libertei-me do braço dele para o encarar melhor.
-O que é que sabes sobre ele e como o conheces?- nem parecia eu ao estar tanto na defensiva.
-A seu tempo descobrirás.
-Como é que tu sabes coisas que eu não sei?!- pus as mãos na cintura, bastante incrédula.
Thomas não parecia aquele rapaz engraçado e sempre disponível para ajudar os outros que eu conhecia. Tinha um brilho gelado nos olhos e um sorriso maléfico nos seus lábios tão perfeitos.
-Há muitas coisas que não sabes sobre mim.
E assim, afastou-se acelerando o passo. Quem seria aquela pessoa? Não era o meu fiel amigo...

Out of the WoodsWhere stories live. Discover now