Capítulo treze

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 Nós caminhamos durante duas longas e exaustivas horas. O sol brilhava intenso no céu azul da pequena Midsy. O calor estava me deixando sem forças, fazendo-me tomar goles d'água constantemente. Minha pele incrivelmente branca estava começando a arder, apesar da tonelada de protetor solar que eu havia passado e das roupas compridas. Quando chegamos a uma clareira, Gael parou e largou sua mochila em uma pedra. Eu fiz o mesmo, feliz por poder descansar os pés por um minuto. Sem demora, ele começou o treino e era estranho treinarmos juntos. Meu metro e cinquenta e nove não parecia o suficiente para seu metro e oitenta. Meu corpo magro não podia ser comparado ao corpo musculoso e definido dele. Parecia uma luta injusta, mas quem disse que haveria algum tipo de justiça, não é? A única justiça, eu esperava poder fazer com as minhas mãos.

Passaram-se mais de duas horas até que Gael interrompeu o treino, visivelmente frustrado comigo. Eu conseguia revidar um ou dois golpes, mas na maioria do tempo eu só apanhava. Na verdade, eu vinha apanhando a semana inteira. Meu corpo até já havia se acostumado com o estado permanentemente moído. Tudo doía. Sentar, andar, correr, falar, deitar... Eu estava sentada em uma pedra, bebendo um grande gole d'água quando Gael se aproximou e parou bem na minha frente.

— Levante-se! – ordenou, seus olhos duros como pedra.

— Mas − tentei dizer. Ele me interrompeu.

— Cale a boca e levante-se! − eu levantei instantaneamente, assustada com o tom agressivo dele. Gael nunca havia falado assim comigo. Era assustador! − Já lhe dei tempo o suficiente. Não podemos esperar uma eternidade para que você finalmente consiga romper a barreira de todos os sentimentos que a estão travando. Se a sua força não aparece por bem, vai aparecer por mal − ele disse, o rosto muito próximo do meu. Eu podia sentir seu hálito quente roçando meus lábios. Apesar de toda a agressividade, eu não conseguia mais me intimidar enquanto olhava em seus olhos. Eles estavam duros, mas havia algo tão doce e aconchegante por trás... Gael segurou minha cintura, puxando-me para si com força, cortando o contato hipnotizante dos nossos olhos. Eu me assustei, pois não esperava por isso. Ele passou a mão pela minha coxa e a subiu pelo meu corpo, eu ficaria excitada se não estivesse assustada com o seus gestos agressivos. Gael não costumava me tocar assim.

— O que você... − e novamente ele me interrompeu.

— Você gosta de ser tocada assim, Mia? − ele me perguntou, sua voz tão grave que eu quase não a reconheci. — Gosta de ser tocada à força? − ele ergueu uma sobrancelha e passou a mão pela minha barriga, levantando minha blusa.

— Gael, por favor, pare com isso e vamos − novamente eu era interrompida.

— Vamos lá, Mia! Eu sei que você está gostando − ele parecia rosnar enquanto falava. — Foi assim que o Théo a tocou, não foi? − eu fechei os olhos, mortificada demais com suas palavras.

Era como se algo dentro de mim tivesse se estilhaçado e os cacos me perfurassem de dentro para fora. Eu reprimi um grito, assim como as lágrimas que surgiam em meus olhos. Gael não pareceu se importar, pois ele continuou. "Seja sincera comigo, Mia. Você gostou do meu irmão ter transado à força com você, não gostou? Ele passou a mão em seus seios assim?" E lá estavam suas mãos pousadas em meus seios por cima da blusa. Eu estava com tanto nojo do Gael, assim como de seu irmão. A avalanche de lembranças vinha com tanta força, era impossível refreá-la. "Foi doloroso? Você era virgem, não era? Como foi perder a virgindade sem o seu consentimento?" Eu tentava afastar suas mãos de mim, seu rosto do meu, mas as imagens que surgiam na minha mente eram como um veneno incapacitante. Eu mal conseguia me mexer. Tudo o que eu queria era me encolher, fugir para o meu lugar seguro e chorar em paz.

"Ele a deixou sozinha quando acabou, não foi? Você queria estar morta, mas estava lá, deitada em uma cama desconhecida, chorando e querendo que aquilo não fosse verdade. Você não foi mais ao colégio depois... Pobre Mia, soube também que tentou se suicidar e fracassou. Nem se suicidar você consegue."

— Cale a boca! − eu disse, um sussurro furioso saído entredentes.

— Faça-me calar! − ele desafiou e eu tapei os ouvidos e me encolhi. Ele me segurava pelos braços forçando-me a olhar para ele.

"Como foi depois disso? Você foi para o hospício, não foi? As únicas pessoas que iam te visitar eram sua mãe e Stevie. Você contou para a sua mãe o motivo da sua tentativa de suicídio? Hein, contou?" Eu apenas tentava escapar de suas palavras. Era cruel demais e estava enterrado fundo, tão fundo... Como ele ousava aparecer agora e cavar-me dessa maneira? Quem era ele para fazer isso comigo? "No seu relatório diz que você fez tratamento com eletrochoque e que várias vezes teve de ser amarrada para não se matar. Você era patética, Mia. Por que não denunciou o meu irmão? Você o amava? Você gostou de tê-lo em cima de você, beijando-a e transando como um animal, não foi?" Havia tantas lágrimas em meu rosto e tanta dor em meu peito. Eu queria gritar e sair correndo dali. "Mia..." ele disse, sua voz parecendo estranhamente calma para o momento. Ouvi-lo dizer o meu nome era terrível, não havia qualquer tipo de adoração, apenas uma frieza que me atingiu, esmagando-me como duas rochas frias e inquebráveis. "A sua mamãezinha morreu sem saber por que a filha dela estava louca..." E essa frase foi o estopim.

Um som selvagem e desumano saiu tão alto da minha garganta, que eu não sabia se era meu realmente. Minhas mãos tocaram a barriga de Gael, e eu o empurrei tão forte, que o fiz cair. Eu subi em cima dele e lhe acertei tantos socos, que nem pude contar. Ele conseguiu desviar poucas vezes de mim. Meus dedos provavelmente sofriam com todo esse impacto, mas eu não sentia nada. A única dor que estava me matando vinha de dentro. Gael me empurrou e nós rolamos pela terra. Ele pretendia me prender, mas eu escapei antes que ele conseguisse. Eu não ia deixá-lo me dominar. Ele se arrependeria de cada palavra saída de sua boca. Eu corri até a sua mochila, que estava muito distante dele para que ele tentasse fazer o mesmo. Peguei sua faca, que estava presa do lado de fora, e virei a ponta afiada para ele. Eu queria rasgar sua garganta e sua língua para que ele nunca mais ousasse falar da minha vida. Do meu passado. Da minha mãe. Corri até ele como um touro, sentindo-me forte como nunca havia me sentido antes. A faca atingiu seu braço, deixando uma cicatriz fina e longa, cheia de sangue vermelho escarlate. Gael veio em minha direção e eu me lembrei do que ele havia me ensinado... "Tirar vantagem da minha falta de musculatura". Quando ele estava bem próximo, meu joelho o atingiu bem entre as pernas, fazendo-o cair no chão e se contorcer como uma criança.

Ele falava alguma coisa enquanto gemia e se contorcia no chão, mas eu não podia entender nenhuma palavra. Estava cega e surda. Tudo o que eu via era um homem que havia me machucado muito. Ele era um alvo, apenas isso, um alvo. E eu precisava acabar com ele. Montei em cima dele, fazendo-o gemer ainda mais. Eu não sabia ao certo, mas acho que estava sorrindo. Um sorriso cruel que me era desconhecido. Lembrei-me de Théo em cima de mim, arrancando as minhas roupas enquanto eu pedia, por favor, para que ele parasse. Lembrei-me do dia em que caí durante o banho, sufocada de dor, sem saber como amenizá-la. Lembrei-me da sensação de ter uma lâmina cortando-me os punhos. Aquilo era tão bom quanto chorar. Lembrei-me da primeira vez em que levei um choque naquela clínica horrível. Eu devia ter contado para a minha mãe o que Théo havia me feito. Eu devia ter contado a ela como eles me "tratavam" naquele lugar. Mas como era possível eu contar todas essas barbaridades para a mulher mais incrível do mundo? Para a mulher que estava lutando contra um câncer há tantos meses. Para a mulher que ignorava seu sofrimento para cuidar do meu. Éramos apenas nós duas. Eu já não estava mais perto dela para ajudá-la, como eu poderia preocupá-la ainda mais?

Meu cotovelo acertou em cheio o nariz de Gael e eu pude ouvir o barulho de algo se quebrando. Eu olhei em seus olhos, tomada de ódio, fúria, raiva, lamento e dor, e pude ver lágrimas em seu rosto. Lágrimas minhas. Eu gritei alto, rugindo feito um animal feroz e descontrolado, e por fim saí de cima dele. Pude ouvi-lo chamar meu nome, perguntar o que eu estava fazendo, onde estava indo. Peguei minha mochila e uma pistola na mochila de Gael e então me afastei dali. Afastei-me daquela campina, de Gael, das suas palavras, das minhas lembranças. Corri pela mata desconhecida durante tanto tempo, que eu provavelmente não devia saber onde estava. Mas eu não me importava. Precisava continuar correndo. Correndo e deixando tudo para trás. Correndo e correndo. E tudo para trás. Deixando. Para trás. Tudo.

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Ponte de cristal (degustação)Where stories live. Discover now