Capítulo nove

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Acordei atordoada naquela manhã chuvosa de sexta. Meu apartamento, que costumava ser silenciosamente gostoso, estava tomado por sons variados vindos da cozinha. Fui até lá e me deparei com Gael sentindo-se à vontade o suficiente para invadi-la quando bem entendesse. Ergui a sobrancelha e o encarei.

— Bom dia − ele disse, desligando o liquidificador, com um sorriso no rosto. − Desculpe se estou sendo muito abusado, só pensei em adiantar as coisas.

— É estranho, mas meu estômago agradece − sorri, feliz por não ter que encarar a cozinha e provavelmente acabar comendo apenas uma fruta e algo terrivelmente industrializado.

— Estou fazendo panquecas para comermos agora e mais algumas para levarmos para o trem. Rose pediu que levássemos mel para ela, pois sua despensa está vazia − ele sorriu e eu estranhei aquele súbito companheirismo entre eles.

— Onde ela e Stevie estão? − perguntei, tomando um bom gole do café que ele havia preparado. Estava amargo e quentinho, uma delícia.

— Foram pegar suas malas e nos encontrarão na estação − assenti.

Compramos uma cabine privada, que consistia em uma pequena sala com portas de vidro e dois sofás acolchoados, um de frente para o outro. Eu usava uma calça jeans escura, uma regata azul bebê e um suéter preto por cima. Meu cabelo, também preto, estava preso em uma trança lateral. Nos pés eu usava meu confortável tênis de corrida. O visual não combinava muito comigo, é verdade, mas eu me sentia estranhamente à vontade.

Stevie e Gael estavam muito parecidos, o que era bastante irônico. Os dois estavam completamente de preto, com seus tênis cinza. Rose, que era chegada ao estilo esportivo muito mais do que eu, parecia não só confortável como também bonita. Ela usava uma calça militar não muito justa e um suéter branco de gola rulê. Seu cabelo curto, naturalmente castanho-avermelhado, era agora apenas uma pelugem, uma lembrança dos fios que outrora estiveram ali, vez ou outra invadindo seu rosto.

Eu me aconcheguei ao lado de Rose, rapidamente sendo folgada e deitando em seu colo. Ela sorriu e logo me presenteou com seu inconfundível cafuné. Eu sorri verdadeiramente agradecida. Meus olhos estavam quase fechando, mas eu me esforçava para ouvir a conversa na cabine. Gael e Rose discutiam rotas possíveis para chegar até a casa dele em Midsy. Stevie mantinha sua pose orgulhosa demais para se meter na conversa. Perguntei-me mentalmente porque ele estava embarcando nessa loucura toda se se sentia tão infeliz. Eu não lhe pedi nada, ao contrário, insisti para que desistisse dessa ideia absurda. E lá estava ele... De cara fechada, sentindo-se estranhamente deslocado e olhando-me como se eu fosse culpada por essa situação. Eu tinha vontade de socar o seu lindo rosto e mandá-lo de volta para a Capital.

Quando o silêncio dominou nossa cabine e apenas o som de Rose mastigando suas panquecas o preenchia, eu olhei para cima, buscando o olhar da minha amiga. Ela sorriu sem mostrar os dentes, levando uma panqueca até a minha boca. Mordisquei um pedaço, deixando o mel adocicar meu âmago enquanto descia pela minha garganta.

— Você está bem bonita − elogiei, referindo-me ao seu novo cabelo. Ou à falta dele.

— Vai ser mais prático − ela disse subitamente constrangida pelo elogio.

Cochilei no colo de Rose nos primeiros trinta minutos de viagem. Estava habituada a dormir pelo menos oito horas por dia e, quando necessário, me presenteava com o "cochilo da beleza", como Stevie o batizou há alguns anos. Eu sabia que dali em diante precisaria dormir menos, mas o sono ainda era mais forte que eu. Em algum momento senti que meu corpo já estava começando a despertar, mas minha mente ainda não estava pronta para isso. Ainda meio inconsciente, permiti-me deliciar-me com a sensação de tranquilidade nos braços da minha melhor amiga. Eu estava reunindo forças para abrir os olhos quando a voz de Stevie preencheu nossa cabine.

Ponte de cristal (degustação)Where stories live. Discover now