Histórias assombradas

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"Me conte os seus segredos
E me faça suas perguntas..."

(The Scientist - Coldplay)

Aquele susto desgraçado de acordar com algo te acertando na cara. Meu primeiro instinto foi levantar as mãos na frente do rosto e me abaixar, em seguida, me pus de pé e chamei por Brielle.
Vi meu atacante parado na pista em frente à casa azul de tia Eleanor.
Uma motocicleta bojuda e velha, um garotinho em um side car com um rolo de jornal na mão. Olhei para meus pés e o míssil que me acertou estava ali: um cilindro de papel envolto em plástico.
Não foi o garotinho, foi Paco, sentado na moto. Ele apontou para os olhos e depois para mim, sério.
- Mas o que... Brielle despertava e olhava atordoada para a cena. O garoto no side car parecia nervoso mas Paco continuava nos fitando fazendo uma cara de mau, não muito convincente.
Brielle se pôs de pé, ao meu lado. O susto ia passando dando lugar à sensação de ter minha testa aumentando de tamanho e ficando dolorida, mesmo assim me assustei um pouquinho com a voz que gritou:
- Porque você não vai para o inferno, Paco Gomez?
A voz não era de Brielle, e sim do pequeno Peter parado ao meu lado com os cabelos apontando para todos os lados.
Brielle desceu os degraus da varanda e Paco, visivelmente amedontrado, deu a partida e foi embora.
Logo em seguida, nossa caminhonete parou onde antes a motocicleta estivera.
- Paco resolveu fazer uma visitinha? - a bravura do seu bom humor de Troy diante dos primeiros raios de sol era impressionante.
- Ele veio entregar o jornal. - respondi apontando para o galo se formando na minha testa.
- Uhh isso vai ficar feio, eu acho, coloque gelo.
- Esse garoto está ficando louco. - Brielle bufou.
Troy a abraçou de lado, conduzindo-a de volta para dentro da casa.
- Você não pode culpá-lo por não conseguir esquecer Brielle, a extraordinária.
Ela virou os olhos e me perguntei se toda essa raiva não seria o sinal de que ele não era o único que não conseguia esquecer o antigo namoro.
- O que você faz acordado tão cedo? - perguntei a Peter quando nos sentamos novamente à mesa do café da manhã e havíamos explicado tudo à Troy e Tia Eleanor.
- Ah, ele sempre faz isso, acorda quando o sol aparece.
- Paco é um idiota. - Peter disse enquanto espetava a maior quantidade possível de panquecas em seu garfo.
Olhei para Brielle com as sobrancelhas erguidas, questionador.
- Peter não gosta de Paco. Quando ele costumava vir aqui, era sempre implicante ou entediante, Peter foi antagonizando ele aos poucos. Mas parece que gosta de você.
- Gosto mais que Cory seja seu namorado.
- Não disse? - ela riu, meio sem graça.
Senti meu rosto corar.
Troy olhava de mim para Brielle, o divertimento nos olhos.
- Alguma novidade? - ela perguntou para o irmão enquanto mastigava.
- Primeiro engula, sua mal educada. E, segundo, eu tenho sim. Na verdade, acho que tenho uma missão para você.
Os olhos castanho-acinzentados da garota se arregalaram e ela espalmou suas mãos dos dois lados do prato.
- Uma missão. Aceito. O que vai ser?
- Você terá suas instruções logo logo. Mas, adianto logo: é um trabalho noturno.
Essas palavras puseram Brielle em um estado hiperativo de preparação. Ela ficou andando de um lado para o outro e passou bastante tempo no sótão.
Estava acabando de desenhar um cross over de super heróis e personagens de desenhos infantis que Peter pediu e pedi a chave da caminhonete de Troy para tomar sorvete com o garotinho quando ela me encurralou na porta.
- Tá fazendo o quê?
- Hã? Vou tomar sorvete com o Pete.
- Como assim? Você vai me acompanhar na missão de hoje à noite.
- Ah, sério? Pois você ficou boa parte do dia rodando por aí sem me incluir ou explicar nada.
- Você não precisa saber de nada agora... Mas devia descansar e não sair por aí.
Olhei nos olhos dela.
- Sério, me explica o que o Troy lhe disse para fazer e me deixe te ajudar...
- Bem você pode me ajudar a arrumar a bolsa de mantimentos agora e...
- Mantimentos?
- Ah, Cory, é melhor você dar uma volta. Quer saber? Você poderia ir tomar sorvete.
Ela me empurrou pela porta e jogou Peter nos meus braços. Quase tropecei.

A noite estava estrelada e quente quando a caminhonete parou em um trecho da estrada perto da floresta, com algumas árvores alongando suas raízes a ponto de quase tocarem no asfalto.
Troy desligou o motor e manteve a luz interna desligada. Ficamos os três calados ouvindo as cigarras e grilos, olhando para a estrada escura à frente.
Troy tinha uma expressão grave que se suavizou depois de um longo suspiro. Brielle estava no meio e apertou a mão do irmão.
- Sabem o que fazer, não é?
Ergui as sobrancelhas.
- Eu não.
- Brielle, você não explicou o plano a ele?
- Ela não me explicou nada.
A garota passou a mão pelo rabo de cavalo.
- Relaxem, isso faz parte do meu plano de condução do plano. Tudo tem que dar certo.
- É assim tão complicado? Suspirei, sabendo que não arrancaria nada daquela cabeça-dura que, mesmo no escuro, eu podia ver abrindo aquele sorriso adorável. Um calafrio percorreu minha coluna.
- Na verdade, fora alguns pequenos pontos, é bastante simples. Mas tomem cuidado.
Tomar cuidado. As palavras dele ainda ecoavam na minha cabeça quando andávamos à beira da estrada usando botas e casacos e carregando duas mochilas. Quando chegamos em um ponto onde as árvores cresciam mais afastadas, Brielle pegou minha mão e me conduziu para fora da pista. Encontramos uma placa quase oculta nas sombras e vi que ali se abria um caminho para dentro do bosque, largo o suficiente para um carro passar.
- Sério?
- Aham. Ela sorriu.
Seguimos andando e minha visão se acostumou à iluminação da lua por entre as copas. Vinte minutos caminhando em silêncio e um ruído chegou flutuando pelo ar e nos acompanhou, sempre aumentando.
- O que é isso? - perguntei.
Seu sorriso despontou em um raio de luar.
- Algo que o Peter já deve ter mencionado mais de uma vez.
A palavra surgiu na minha mente.
Cachoeira
Também sorri.
- Quero ver isso.
Paramos em uma clareira gramada, ela era plana e em um certo ponto descia até uma lagoa onde uma pequena cachoeira reluzente se derramava ruidosa do outro lado de um riacho. Era lindo.
- Se você tivesse me dito que eu iria ver isso, teria vindo de bom grado.
- Não acho que você é o cara que aceitaria vir passar a noite em uma floresta. Mas te trouxe mesmo assim, achei que seria uma boa surpresa.
Andamos até um ponto de grama macia e jogamos as mochilas no chão. Pensei que ela tivesse alguma barraca, mas ela só estendeu um cobertor no chão. A noite estava estrelada e quente. Só o cobertor estava ótimo.
Sentamos lado a lado, ela comia um cookie de tia Eleanor e me ofereceu um.
- Então - comecei a falar quando ela me entregou uma garrafa de água - vai finalmente me explicar o que viemos fazer aqui?
Ela deitou e olhou para o céu.
- É um ponto de encontro.
Permaneci em silêncio esperando que ela continuasse.
- É meio que uma missão de resgate...
Estava olhando a cachoeira à nossa frente mas percebi o sorriso em sua voz.
- Eu escolhi esse lugar mas o combinado era que Troy estivesse aqui aguardando, mas houve um imprevisto e ele precisou resolver algo importante.
- E vamos encontrar...
Algo na minha visão periférica me fez virar para a esquerda.
- O que foi?
- Nada, achei que tivesse visto algo.
Ela sentou novamente e passou a mão pelos meus cabelos.
- Tá com medo do escuro? Não fique, criança.
- Para com isso, não estou com medo.
Comemos mais um pouco e caminhamos para perto da cachoeira, a névoa que se formava ao redor era refrescante.
Ali estava eu com Brielle em um lugar simples e realmente bonito. Se me esforçasse, poderia contar os dias até a tarde em que estive com Isabela no lago e a pedi em namoro. O jeito que o mundo funciona não faz sentido.
- No que você está pensando?
A pergunta me tirou de meus pensamentos.
- Pensando no jeito que as coisas funcionam. Eu decidi vir com vocês, no escuro, e parece que as coisas mudaram.
Ela franziu os lábios.
- Isso é bom ou ruim?
- Na verdade, é bem empolgante na maior parte das vezes. Meus pais pensam que decidi passar um tempo em uma cidade vizinha e tem motivos para acreditar que eu faria isso e estou vivendo coisas novas mas o que fizemos antes sempre acaba aparecendo de novo.
- Está pensando na sua namorada?
- Sim. Acho que ela não é mais minha namorada mas, eu tenho pensado nela às vezes. E no meu amigo, Nicolas. Ela beijou outro garoto, ele meio que celebrou isso, era uma brincadeira, eu sei, mas não é um tipo de coisa que uma garota deve fazer com seu namorado e também não é algo que um amigo deva incentivar.
Fiz uma pausa, clareando meus pensamentos.
- Não estou mais bravo, bem, às vezes eu ainda fico. Mas eu os perdôo, sabe. Estando aqui no alto de uma cachoeira, tudo parece ser uma grande bobagem. Mas eu não vou voltar e ser o Cory, namorado da Isabela e amigo inseparável do Nicolas. Não me vejo mais assim.
Eu disse tudo isso, observando a queda d'água.
Olhei para ela, havia um meio sorriso ali e admiração nos olhos dela. Ela não disse nada mas deslizou a mão pelo meu antebraço.
- Mas e você?
- O que tem eu? - ela perguntou.
- Você sabe da minha história nada empolgante e eu sei só uma pequena parte da sua. Seus namoros, suas amizades...
Brielle pôs uma mecha de cabelo avermelhado para trás da orelha.
- Ah, eu tenho vários amigos, você pode não ter percebido, mas eu gosto de fazer amizade com desconhecidos. - deixei escapar uma risada pelo nariz - Você ainda não conheceu alguns que vivem aqui porque eu meio que me afastei, por causa da minha única e trágica experiência de namoro.
- Paco.
- Paco.
- Você ainda gosta dele?
Ela me olhou surpresa e intrigada.
- Você chegou a achar isso?
Fiz que sim com a cabeça.
- A raiva aparecendo quando eu sempre te vi sendo alegre e tudo...
- Ah, isso... Bem, é simplesmente raiva e não alguma paixão recolhida e disfarçada.
- Então... Conte sua história.
Ela mudou o peso de uma perna para a outra e tirou o casaco, jogou na grama e sentou. Fiz o mesmo.
- Meus pais morreram em um acidente, como você sabe. Desde então passamos a morar com nossos avós. Apesar da tristeza, o amor deles nos fez ficar bem, a vida era boa, uma cidade bem legal, mas éramos mais jovens e Troy passou por uma fase rebelde, começou a beber e passar madrugadas fora de casa...
Não a interrompi mas fiquei imaginando um cara calmo como Troy em uma fase rebelde.
- Foi por aí que houve o episódio das ruínas e tal... - ela deu um risinho - nós visitávamos a tia Eleanor às vezes, aí minha avó achou que seria uma boa idéia passarmos as férias aqui. O marido de tia Eleanor havia morrido de uma doença grave e Peter ainda era muito pequeno. Ela superou o luto e sempre teve muitos amigos na cidade, ela concordou e ficou contente em ter dois adolescentes em sua casa. Nós viemos, Troy não queria vir, ele ainda fez algumas bobagens - uma das quais ele está em vias de resolver agora, ou já resolveu...
"Bem, eu conheci o Paco na igreja, seu padrasto era o xerife, ele se gabava disso mas, como você viu, isso não deve lhe render muitas regalias... Vivia passando a mão naquele belo cabelo cor de areia...
Por um momento lembrei do meu corte de cabelo exagerado e quase vesti meu casaco de volta para cobrir minha cabeça com o capuz.
- Eu achei ele interessante, o garoto emburrado e meio arrogante que às vezes demonstrava ser legal com os outros... Nessa mesma época Troy conheceu Riley Simons e se apaixonou. Decidimos ficar aqui depois que o verão acabou e foi bem legal, na verdade. Troy foi voltando ao normal, Paco e eu começamos a namorar... Um tempo longo e feliz.
"Sei que o amor nubla seus sentidos mas eu via o quanto ele era um idiota e, por conta própria, desviei o olhar disso. Paco era arrogante, implicante, gostava de se gabar de tudo e de brigar com todo mundo para parecer superior... e foi aí que houve a gota d'água. Nós transamos. Foi a minha primeira vez e fiquei surpresa com o quanto ele quis que o momento fosse especial.
"Estava tudo perfeito, até dois dias depois, na escola. Eu passei pelo corredor e lembro de ter sentido os olhares e escutado as risadinhas... "Uma garota detestável me perguntou o que eu tinha feito no fim de semana e disse que eu estava diferente. Eu aguentei até o horário de saída um milhão de piadinhas, ele espalhara para a escola inteira. Foi humilhante demais. Chorei agachada perto dos conteinêres de lixo, Troy me achou, ele havia escutado algumas conversas e foi tirar satisfação com Paco.
"Paco levou um soco e foi pra casa, Troy era maior e mais velho. Mas ele não parou por aí, o namoro de Troy e Riley era um segredo, os Simons eram muito conservadores e não era comum ver os jovens irmãos Simons de namorinho com ninguém por aí. A propriedade deles fica no fim daquele caminho ali - ela apontou para o caminho do outro lado, oposto àquele por onde viemos - mas ele desconfiava de algo e um dia seguiu Troy, tirou fotos do casal e fez todo mundo saber. Sei lá - ela fez uma cara pensativa - talvez a meta de vida dele fosse acabar com a reputação dos irmãos Delevine, mas o caso é que os Simons ficaram furiosos e impediram seus filhos de tomar qualquer caminho que não fosse o de ir e voltar da aula e depois de um tempo eles sumiram da escola: foram morar em outra cidade.
"Paco estragara tudo. Troy tem um bom coração e não pensa mais nisso mas a raiva ainda me cutuca quando vejo aquela cara de idiota dele e aposto que ele se lembra do dia em que acordou e viu seu carro destruído por um taco de beisebol e logo em seguida sentiu o taco acertar sua própria cabeça. Troy e eu voltamos a morar com nossos avós e ele continuou mantendo contato com Riley.
Ela se virou para mim.
- E aí, gostou?
Não sabia exatamente o que dizer.
- Bem, foi como ouvir histórias assombradas em um acampamento. Só que melhor.
Ela sorriu.
- Viu só? Há males que vem para o bem, se não houvesse o Paco e a Isabela, talvez eu não tivesse aqui com você agora.
Senti vontade de segurar sua mão e o fiz.
- Fico feliz por isso.
- Eu também. Você é um bom amigo, Cory. Me contou ótimas histórias de quando era um garoto mas parece que foi ficando parado demais... Como você disse, quando se está em um lugar diferente, os problemas de antes se tornam bobagem. O mundo é enorme e você devia andar mais por aí e se dar conta de que há muito pra se ver e viver...
Seus olhos se estreitaram e algumas possibilidades dançaram uma lenta valsa dentro da minha cabeça.
Creio que me inclinei alguns milímetros até que um estalo atrás de nós se sobrepôs ao barulho da cachoeira e me virei para ver o que era mas Brielle tocou no meu braço e apontou para o caminho do outro lado onde uma luz de farol deslizava pelo chão.
- Olha só.

A Tempestade Da Cor Dos Teus OlhosWhere stories live. Discover now