O Garoto do deserto

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Os dois corações estão vazios, porque no lugar daquele amor todo agora não existe nada. E a vida segue assim, imperfeita.

(Felipe Machado)

Houve mais um amanhecer.

Despertei e a cabeça de Brielle repousava no meu ombro e minha face estava caída sobre o topo da cabeça dela. Troy fitava a estrada com olhos serenos cheios de sono e sonhos.

Já dava pra ver que ele era um cara legal, calmo e quase normal, diferente da irmã. Mas, às vezes, eu podia ver que algo brilhante se escondia por baixo dessa superfície lisa e imperturbável.

Toquei seu braço e me ofereci para dirigir ele me olhou como se estivesse me vendo pela primeira vez, semicerrou os olhos e disse baixinho "é carinha, você poderia fazer isso"
Trocamos de lugar (Brielle continuou dormindo encolhida, enrolada em um edredon cinza), dei a partida e caminhonete deslizou pelo asfalto.

Me senti completamente acordado com o ar frio da manhã no rosto enquanto Troy ressonava, enroscado em Brielle e seu edredon como uma bola cinza.

♢♢♢

Paramos em um posto de gasolina na entrada da cidade de Blue Falls para abastecer o carro e usar o banheiro.

- Eu preciso de um banho. - eu disse.

Descansamos em hoteis de beira de estrada nas duas noites após a minha decisão de viajar com os (eu descobri depois) irmãos Delevine, falei com meus pais quatro vezes, depois disso, Troy dirigiu sem parar como se a determinação para fazer algo misterioso eclipsasse seu cansaço.

A viagem até aqui foi cheia de tranquilidade, seria um monte de tédio se eu não tivesse Brielle ao lado para conversar e Troy com seus comentários engraçados.

Nesses quase dois dias de viagem de carro descobri que: Brielle tem a mesma idade que eu, ela costumava tingir os cabelos mas percebeu que a cor natural dos cabelos é muito bonita, gosta de pintar nove unhas das mãos de uma cor e apenas uma de cor diferente ("não consigo aderir à igualdade integral"), uma vez ela beijou um garoto em uma árvore, se arrependeu e o empurrou lá de cima - ele quebrou o pulso, se afogou quando fingia ser uma princesa do mar (Troy a salvou, ela tinha nove anos e ele doze), quando tem insônia gosta de tomar chá e comer biscoitos de canela, tem um sinal em forma de trevo nas costas, seu primeiro porre foi de licor de hortelã (ela ziguezagueou bêbada meia hora de bicicleta com uma amiga porque sentia que estava voando), Troy quer ser médico mais ainda não tem certeza, como ele mesmo disse "estou absorvendo cada pedacinho daquela universidade para descobrir onde quero ir", e por acaso, era na mesma universidade em que eu estou prestes a entrar - isso explicava eles estarem lá na cidade - , ele perdeu sua virgindade com uma garota nas ruínas de uma igreja (isso Brielle me contou, ele riu e revirou os olhos), gostava de futebol mas fazia tempo que não jogava, seus pais morreram há alguns anos e eles moravam com os avós e uma vez em uma peça de teatro, Brielle interpretou o Pequeno Príncipe e ele, a Raposa.

Contei a eles que: Meu nome do meio é Jean por causa de Os Miseráveis, gosto de frutas vermelhas - não muito de morango, a única vez que fui a um show foi quando eu tinha quatorze anos, desisti de acampar quando me perdi em uma floresta quando era criança, que eu fiz um desenho enorme na garagem de um vizinho, sofri uma concussão na pré-adolescência por causa de uma bolada na cabeça, já fiz uma competição de bolinhos fritos na minha antiga cidade e vomitei e falei um pouco sobre meus pais e amigos de infância mas sem me aprofundar muito.

- Nós vamos parar na casa de alguns amigos aqui. - disse Troy.

- Que bom...

Troy enchia o tanque enquanto usei o banheiro não vi Brielle quando saí, então supus que ela estivesse no banheiro feminino. Entrei na loja de conveniências. Apanhei alguns sanduíches, um pacote grande de batatas e algumas caixas se suco ("vai, beba mais uma lata de refrigerante, seu louco, e se envenene o máximo que puder!", coisas de Brielle) parei no caixa e o atendente, um tipo mais magro que eu e com uma juba loira e a cara sardenta olhava com os olhos semicerrados pela vidraça na direção dos tanques de gasolina onde o único carro abastecendo era a caminhonete.
Pigarreei e ele se virou.

- Ah, e aí? - ele continuava olhando pra fora, passando as minhas compras pelo caixa.

Ele parou por alguns segundos, pigarrei novamente.

- Cara, - ele disse me olhando, curioso

- você, por acaso, está naquela caminhonete ali?

- Uhum.

- E, por acaso, aquela é a caminhonete que o Troy Delevine dirige, às vezes?

- É sim. Você conhece ele?

- Sim... Ah, olha ali ele.

Ele virou seus olhos apertados para mim mais uma vez.

- Você é... amigo do Delevine?

- Sim, eu sou. Por quê?

- Hm... Vocês estão viajando juntos?
Um sorriso se formou nos lábios dele.

Antes que eu respondesse ouvi a voz de Brielle, sem vestígios de sonhos, estava mais para provocante:

- Estamos viajando juntos sim, Gomez. Algum problema?

Ele se virou com os olhos cheios de surpresa e satisfação para Brielle.

- Ora, ora... eu estava justamente me perguntando se você não estava com o seu irmão assim que vi a caminhonete.

- Bom agora você já sabe. Dá pra acelerar isso aí? Estamos com pressa.

Para mim Brielle sempre foi alguém que estava aberta a receber as pessoas da melhor forma na sua vida, às vezes tirando um tempo para implicar com Troy ou me zoar mas nunca tinha visto essa animosidade nela. Ela revirou os olhos.

O garoto passou os produtos pelo caixa com uma lentidão exagerada e sempre voltando os olhos para Brielle, que ficou séria o tempo todo.

- Então... Por um acaso, você, seu irmão e o amigo de vocês... Vieram passar uma temporada na cidade novamente?

- Isso é da sua conta?

- Olha, pode ser que sim...

Pus uma nota de cinquenta no balcão, o garoto atendente a pegou, ainda de modo lento, a levantou contra a luz que entrava pela vidraça e a examinou...

- Ah, fala sério, você sabe que a nota é verdadeira, me poupe.

- Segurança nunca é demais.

Ele estendeu o troco e eu segurei. Ele não soltou.

- Sou Paco Gomez.

Assenti e murmurei meu nome. Ele sorriu ainda segurando o dinheiro.

- Vamos Cory.

Brielle puxou o dinheiro da mão de Paco e me segurou pelo braço, me levando para fora da loja. Paco gritou "mande um oi para o Troy por mim!"
Troy nos esperava com a caminhonete ligada.

-Vocês levaram um tempinho. Tudo pronto?

- Tudo. O Paco Otário Gomez tava enchendo a paciência e mandou um oi para você.

Troy sorriu.

- O pequeno e magricela Paco. Como ele está?

- Não mudou absolutamente nada. Infelizmente.

Fiquei confuso.

- Espera, quem é esse garoto, Paco?
Brielle virou-se para mim, ela estava sentada no meio.

- Ninguém muito importante.

- Paco veio do oeste, morava com a mãe em uma cabana no deserto e, quando a vida difícil ficou mais difícil, a mãe casou com um cara daqui e eles se mudaram para cá... Ah, claro, eu já estava esquecendo, ele era também o garoto por quem Brielle costumava suspirar na igreja aos domingos.

Um tapa acertou Troy na cabeça e ele gargalhou.

- E o que aconteceu? - quis saber.

- Ele mostrou que não era bem o garoto que me fez achar que era.

Claro, pensei, todo mundo, em algum momento, deve ter uma pessoa que com seu erro final nubla todos os momentos bons vividos antes. Provavelmente todo mundo tem, pelo menos uma vez, uma Isabela ou um Paco.

A Tempestade Da Cor Dos Teus OlhosWaar verhalen tot leven komen. Ontdek het nu