Jogos de azar

202 19 15
                                    

As pessoas dizem que amigos não destroem uns aos outros
O que elas sabem sobre amigos?

("Game Shows Touch our Lives", The Mountain Goats)

Duas semanas se passaram e ainda era verão. Eu não poderia estar mais feliz.
Depois de superar o choque de ver Isabela descendo a escada para tomar café da manhã usando a minha camisa, minha mãe decidiu disputar a vaga pela maternidade dela, eu acho. Convidava ela para almoçar e/ou jantar todos os dias e ontem fomos ao litoral.
Bels tinha a pele dourada hoje durante o café da manhã e me olhava, parecendo preguiçosa e sonolenta.
- O que você acha de, sei lá... acordar?
Ela me deu um tapinha enquanto mastigava.
- Sabe que dia é hoje, não é?
Ela olhou para cima, pensativa.
- Quinta ou sexta, eu acho. Que dia da semana sua mãe costuma cortar seu cabelo mesmo?
Antes de sairmos de carro no dia anterior, minha mãe disse que eu estava precisando cortar o cabelo e, por coincidência, era quinta, o dia tradicional do corte de cabelo na infância. Eu fugia para o barbeiro amigo do meu pai sempre que achava que estava na hora, ou para o salão onde Nicolas cortava o dele, mas desse vez não consegui fugir.
Fiquei sentado na sala enquanto minha mãe usava a tesoura com os óculos equilibrados na ponta do nariz, ela cortou uma mecha particularmente grande e a amarrou com uma fita, meu pai perguntou se ela já não tinha uma quantidade exagerada do meu cabelo guardada como lembranças. "É que agora ele já é adulto" foi sua resposta.
Subestimei sua empolgação. Quando cortou a mecha de lembrança, ela cortou além do que devia e decidiu acertar o comprimento me deixando com o cabelo muito curto e um topetinho ridículo.
- Não brinca, sua pateta - apertei sua bochecha - Nicolas vai chegar aqui a qualquer momento para nos levar até o campus.
- Ah, é mesmo.
Isabela gostava de Nicolas, assim como todo mundo, mas protestou um pouco quando eu aceitei que ele nos levasse até o campus, faltava ainda mais duas semanas até que minhas aulas começassem mas Isabela queria que fôssemos juntos até lá para ter mais um "momento nosso" chegando juntos ao campus, vendo a distância do meu quarto para o dela, ajudar a decorar seu quarto antes que as aulas começassem e todas essas coisas, mas Nicolas estava num momento "vamos aproveitar todo o nosso tempo juntos antes de irmos para universidades diferentes", e isso estava um pouco difícil de conciliar com os momentos com Bels e eu sabia que havia um pouquinho de ciúmes das duas partes. Meu pai ia precisar do carro hoje, então a idéia de Nicolas veio a calhar.
A auto estrada estava tranquila, com pouco trânsito, Nicolas cantarolava e eu ia no banco de carona enquanto Bels ia encolhida no banco de trás.
Apanhei a mochila entre as minhas pernas e apanhei meu caderno de desenhos.
Sempre gostei de desenhar, é quase como se tivesse nascido com um lápis na mão mas, artes não são algo que meus pais me influenciariam a fazer, não importa quão bom eu fosse, então fiz disso um hobby.
Comecei a fazer rabiscos aleatórios no papel com carvão, olhei pelo retrovisor e vi Bels olhando pensativa pela janela.
Sua gêmea feita de traços começou a tomar forma na página, caprichei nos detalhes e completei com o retrovisor ao redor de sua face angelical.
Dando os últimos retoques me sobressaltei com a voz dela.
- COMO VOCÊ SABE DESENHAR TÃO BEM ASSIM E NUNCA ME CONTOU?
Nicolas gargalhava.
- Sério que você não sabia? Esse cara é um artista!
Arranquei a página e entreguei a ela.
- É seu.
Isabela segurou o papel contra o peito e me deu um selinho.
- Cory, isso é lindo, você tem muito talento.
- Obrigado.
E lhe dei outro beijo.
- Chega de melação, galera! E porque você nunca me desenhou, cara?
- Tenho certeza que eu sou um modelo melhor - Bels respondeu por mim.
Nicolas nos olhava com uma cara desdenhosa.
- Duvido muito.
Bels voltou para o banco de trás e folheei o caderno.
- Mas eu tenho um desenho seu aqui, cara.
- Tá brincando! - disseram os dois em coro.
Peguei o papel e mostrei, era um desenho dos meus dois pés calçando Chuck Taylor's e Nicolas sentado de costas na beira do pier com uma garrafa na mão.
- Caaaaaaaaara, que maneiro. Eu quero esse desenho.
Havíamos acabado de chegar na cidade e estávamos perto do campus.
Entreguei a ele e ele não parava de olhar para o papel. Uma lembrança me ocorreu.
- Sabe, uma vez eu fiz um desenho enorme na parede da garagem de um velho rabugento na minha antiga cidade, ele prometeu arrancar a minha pele mas consegui chegar em casa a tempo e minha mãe quase fez isso por ele... Eu estava olhando para o nada vendo as lembranças se descortinarem na minha cabeça.
- Como era o desenho? Melhor que esse aqui? Duvido.
Nicolas erguia o papel na frente do meu rosto, arranquei das mãos dele e esfreguei na sua cara.
- NICOLAS, CUIDADO! - Isabela gritou e olhamos para a frente ao mesmo tempo, um cachorro peludo olhava para a frente do carro, assustado.
Nicolas mudou de direção à tempo e freiou antes de batermos em uma árvore na calçada.
- Tá tudo bem? Perguntei.
- Aham. - Isabela suspirou.
Nicolas olhava pelo para-brisa com um olhar vidrado.
- Cara? Você está bem?
Ele murmurou algo.
- O quê?
- Batemos!
- O quê? Não, você freiou bem rápido...
- Nós batemos, cara!
Desci do carro o mais rápido possível e ele fez o mesmo. O farol dianteiro estava sendo pressionado contra o tronco da árvore.
Nicolas passou a mão por entre os cabelos, o olhar ainda arregalado.
- O. Meu. Pai. Vai. Me. Matar.
Senti meu estômago afundar, foi tudo culpa minha.
Isabela se juntou a mim na tentativa de acalmar ele.
Uma outra voz se juntou às nossas.
- Vocês estão bem? Precisam de ajuda?
Nos viramos, era um cara grandão do tipo que vive na academia, usando roupas de corrida, o cachorro estava parado ao seu lado abanando a cauda.
Nicolas repetiu sua sentença de morte.
- Sou Cory Walter, esses são Nicolas e Isabela.
Ele me cumprimentou
- Sou o Toby, foi muito grave isso aí?
O cachorro latiu, Nicolas olhou para ele como se fosse a primeira vez que estivesse vendo um cachorro.
- Foi o farol. E o capô, eu acho. Nós tentamos desviar do seu cachorro e batemos na árvore, foi tudo culpa minha.
- Na verdade não só sua, eu estava caminhando e levando ele para dar uma volta parei por aqui e o deixei aqui preso para ir falar com uma amiga do outro lado da rua, acho que não prendi direito.
Nicolas apoiava a testa na árvore.
- Você conhece algum mecânico por aqui? - Isabela perguntou e ele pareceu notá-la pela primeira vez.
- Claro, eu posso levar vocês lá. Mas, para amenizar minha culpa, vou levar vocês até a minha casa para acalmar seu amigo e aí vocês podem ir até a oficina.
Vi que Nicolas realmente precisava se acalmar.
- Vem cara.
Tomei ele pelos ombros e o coloquei no banco de carona depois que Isabela, Toby e o cachorro subiram no banco de trás, manobrei o carro e seguimos até onde Toby morava. Era um apartamento legal e moderno sem muitos móveis.
Toby nos contou que estudava à dois anos na mesma Universidade em que Bels e eu íamos ingressar, mas que alugou um apartamento ali perto para não precisar morar em um dormitório.
Nicolas se acalmou quando Toby lhe deu uma dose de whisky e aceitou que eu levasse o carro até a oficina já que fui eu que atrapalhei ele na direção.
Bels atravessou o gramado até o carro comigo e se ofereceu para ir junto.
- É melhor você ficar e comer algo, Toby é um cara legal e disse que podemos ficar por aqui até que o carro fique pronto.
- Não demore.
Ela plantou nos meus lábios aquele beijo doce que só ela sabia dar.
Li o endereço e as coordenadas que Toby anotara e fui dirigindo até lá.
Vi ao longe os prédios da Universidade, e senti uma espécie de carinho e ansiedade por saber que ali seria meu lar em pouco tempo.
A oficina era grande e sofisticada, pelo menos o quanto uma oficina pode ser sofisticada, ficava do outro lado da cidade, e o dono conhecia Toby. O homem disse que o problema não seria muito difícil de resolver mas levaria algumas horas.
Enquanto o serviço era feito, fui andando pelas vizinhança da oficina. Ali era uma área comercial bem movimentada, parei em uma loja de discos e gastei boa parte do tempo ziguezagueando por entre as prateleiras.
Comprei dois discos e andei até o café do outro lado da rua. Sentei com um capuccino em uma cabine perto da janela e destravei a tela do meu celular, tinha uma mensagem de Nicolas.

A Tempestade Da Cor Dos Teus OlhosNơi câu chuyện tồn tại. Hãy khám phá bây giờ