Traças

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Talvez eu fique bêbado novamente
Para sentir um pouco de amor...

(Drunk - Ed Sheeran)

Eles chegaram bem cedo. A dor de cabeça, tontura, enjôo e a sede. Sede sem fim.
Deus mandou seus Quatro Cavaleiros do Apocalipse da Ressaca para me fazer aquela bela visita matinal com o lembrete "Nós vamos aparecer todas as vezes em que você quiser bancar o fodão com uma garrafa de bebida alcoólica".
Ótimo. E agora aquele pensamento.
Eu nunca mais vou beber.
Eu sabia que era mentira mas não custava tentar a mudança.
Eu estava sentado na sombra de um salgueiro entre o lago e um trecho de floresta. A luz do sol refletida na superfície da água era cegante.
Fui me erguendo aos poucos até conseguir ficar de pé, foi difícil, dei uma topada na garrafa cheia até um pouco menos que a metade.
A secura na boca estava me deixando doido, protegi meus olhos do sol o melhor que pude e saí para procurar algum lugar onde pudesse comprar algo para beber e alguns remédios.
Achei um supermercado a uns duzentos metros dali e comprei duas garrafas de água e alguns analgésicos.
Não sabia para onde voltar imediatamente, sabia que tinha que ir para casa mas não estava em condições então, voltei para o salgueiro.
Pus alguns analgésicos na boca e engoli toda a água da primeira garrafa de uma vez só. Fechei os olhos, queria que a sensação de um pônei galopando na minha cabeça parasse e que eu fosse teletransportado para a minha cama.
Fiquei assim por algum tempo, tentando, quem sabe, cochilar um pouco antes de resolver o que faria.
As lembranças mais próximas do dia anterior espreitavam por de trás de um véu em algum lugar na minha mente mas preferi deixá-las lá mesmo.
Mesmo com os olhos fechados, podia ver através das pálpebras a luz do sol e, por isso, foi uma surpresa quando ela foi bloqueada e alguém falou.
- Hey.
Abri os olhos da melhor maneira que pude, tentei focar no rosto da pessoa mas a luz forte não deixava. Ela se aproximou, era um cara.
- Você está bem?
Fiz que sim com a cabeça e ele estendeu a mão.
- Sou o Troy.
- Sou Cory. Minha voz saiu rouca e baixa.
- Hum... Você parece ser um cara legal, acho que devia ficar longe disso aqui, pelo menos por enquanto.
Ele se abaixou e apanhou a garrafa ao meu lado e bateu com os nós dos dedos nela.
- Acho que tem razão.
- Força, cara! Dava pra ver que ele estava sorrindo - tem alguém que quer falar com você. Até mais.
Ele se afastou a passos largos em direção à pista. Ouvi alguns passos leves por perto.
Ao lado do tronco do carvalho surgiu um rosto que eu provavelmente já tinha visto em algum filme ou sonho, não poderia dizer com certeza.
Olhos, cinzentos, uma mecha de cabelo cor de cobre caindo ao lado do rosto.
Quis me levantar, mas percebi que não conseguiria fazer isso rápido o suficiente então permaneci sentado.
- Oi.
- Você é o cara com quem eu falei numa loja de conveniências em outra cidade ou o gêmeo malvado dele com um corte de cabelo nefasto?
Algo no fundo da minha mente sugeriu que eu provavelmente riria disso no meu estado normal.
- Loja de conveniências?
- É. Em Ashtown, faz algumas semanas.
- Ah, claro. A garota maluca do refrigerador.
Ela sorriu e sentou ao meu lado.
O sorriso dela era muito bonito.
- Eis um título que eu provavelmente vou usar na primeira oportunidade.
Disso eu ri. Seu rosto assumiu uma expressão preocupada.
- Você está bem, Garoto Normal do Refrigerador?
Não respondi, só fitei o lago se enrugando ao vento. Ela também olhou.
- Troy e eu chegamos aqui bem cedo, eu vi você entornando essa garrafa e chorando... - fez uma pauza e me observou - e saiu ziguezagueando de manhã, queria ir atrás de você para garantir que não se machucaria, sei lá, mas o Troy achou que você ficaria bem. Ainda bem que voltou.
- Acho que estou bem. Não totalmente, sabe...
Ela fez que sim com a cabeça.
Ela parecia esperar por mais, mas só olhei para a margem do lago novamente.
Me apoiei no tronco mais uma vez e me pus de pé, tentei me equilibrar em um só pé mas acabei cambaleando.
- O que você está fazendo? - ela se levantou e segurou meu braço.
- Estou tentando tirar o tênis. Quero molhar meus pés no lago.
- Ah, claro.
E como se fosse a coisa mais comum a se fazer com um estranho, ela se agachou e desfez os nós do meu tênis e retirou um, depois o outro, em seguida, enrolou as barra das minhas calças até o tornozelo. A garota usava sandálias de borracha e também ficou descalça. Esvaziei tudo o que tinha nos bolsos e pus na mochila.
- Vem - ela chamou e fomos de braços dados até a margem.
Senti a água gelada e a lama entre os meus dedos assim que meti os pés no lago. Fiquei grato por essa sensação.
- Melhor agora? - Ela perguntou.
- Bem melhor...
- Posso perguntar o que você está fazendo aqui nessa cidade?
Droga, pelo visto ela estava com um prego pronta para cutucar minhas feridas, mesmo as mais recentes.
- É uma longa história.
Ela ponderou por um momento, se abaixou e pegou um pouco de água nas mãos em concha e molhou o rosto.
Isso me fez lembrar que eu ainda estava com muita sede e pensei na garrafa de água caída ao lado da minha mochila.
- Adoro uma boa história. Mas se você não quiser contar, tudo bem.
Havia algo no jeito que ela me olhava ou no jeito que sua voz soava, meio grave e bonita que me fazia confiar nela. Eu contaria tudo mas não agora. Em vez disso, decidi pôr minha curiosidade em prática, afinal, quem era aquela garota misteriosa?
- E você, como eu te encontrei na minha cidade e agora que me vejo meio perdido aqui também te encontro? O que você está fazendo aqui?
Ela sorriu de um jeito que me fez voltar ao dia na loja de conveniência e a vi novamente envolta em névoa de refrigerador.
- Troy e eu estamos viajando. É uma jornada meio longa mas no fim, eu tenho certeza que tudo vai ter valido a pena de uma forma maravilhosa.
Não pude deixar de pensar que, apesar de o mais longe que eu tivesse viajado era para essa cidade onde eu estou agora, a idéia de viajar sozinho com Isabela me encheria de planos e sonhos. Pelo menos, até ontem.
- Isso parece ser maravilhoso - comentei - e um tanto louco...
Ela deu de ombros, com um sorriso que lhe diminuía os olhos.
- Talvez seja. As duas coisas.
Ela prendeu seus cabelos em um coque e se agachou para apanhar mais água e passar na nuca. De repente, me ocorreu que eu não sabia seu nome.
- Hey! Como você se chama?
Seus olhos se abriram mais um pouco, travessos.
- Que importância há num simples nome? O que chamamos de rosa, com outro nome teria o mesmo perfume.
Minhas náuseas haviam diminuído consideravelmente.
- Usar Shakespeare para não dizer o próprio nome não soa como algo que um poeta canalha faria?
- "Poeta Canalha"! Você é bom nisso, garoto. Então quer dizer que está familiarizado com o Bardo?
Dessa vez eu que dei de ombros.
- Devo ter ouvido isso na aula de inglês. Não costumo ler muita ficção ou peças.
- E o que você lê? Artigos científicos, auto ajuda e história concreta e provada?
Corei por causa de suas palavras e ela passou a mexer dentro dos bolsos de seu blusão. Prestei atenção no que ela vestia, um blusão cinza e shorts. Acho que não fazia muito tempo que ela saíra da cama.
Ela tinha uma edição de bolso meio antiga de Romeu e Julieta nas mãos.
- Olha só, com a literatura sempre à mão. - brinquei mas ela nem ligou.
- É um dos meus livros de traças.
- Estão com as páginas comidas?
Ela abriu em uma página e entre as duas páginas - que estavam realmente um pouquinho roídas nas pontas - tinham três pares de asas brancas deisiguais coladas.
- As traças tem o costume de roer meus melhores livros. Se eu estou achando que esse livro é bom, deixo por um tempo na estante, se as traças começarem a comê-lo é a confirmação.
Ri baixinho.
- Você é mesmo louca, sabia?
Ela sorriu.
- Talvez.
Me espreguicei, e senti meu estômago embrulhar e a sede voltar.
- Acho que vou voltar e beber água.
Andamos de volta até a árvore e a garota me convenceu a tomar café com ela e conversar um pouco antes de ir embora.
Encontramos um café pequeno e bastante limpo ali perto. Compramos waffles e café preto para mim e para ela.
- E aí, vai me contar sua história ou não?
Contei para ela. Não tudo, mas fui direto ao ponto e falei da universidade, do carro e de Isabela beijando un cara que acabávamos de conhecer. Talvez eu tenha exagerado um pouco no tom de voz quando cheguei nessa parte.
Ela ficou olhando para um pedaço de waffle na ponta do garfo, pensativa.
- Isso é complicado, não é?
- Muito. Concordei.
- E o que vai fazer agora?
Mastiguei um pouco, ela me fizera prometer que ia tentar pôr para dentro o máximo que eu pudesse.
- Tenho que voltar para casa, não estou afim de ficar ouvindo pedidos de perdão e um monte de blá-blá-blá. Uma hora eu vou acabar parando para escutar tudo e provavelmente vou perdoar, mas agora não.
- Sim, é claro.
Ela parecia bem mais normal e menos mágica que da vez em que a vi no Super Sanduíche, mas o sorriso que aflorou em seu rosto e o que ela disse em seguida, me fez fugir desse pensamento.
- Quer viajar comigo?
- Como é?
Ela bebeu o último gole de café e virou-se para a janela de vidro, observando o movimento do lado de fora.
- É um convite, quer ir comigo em um baile?
- Tipo um baile de escola?
Recordei do meu baile de formatura com Bels ao meu lado, estonteante em um vestido azul escuro. Meu estômago embrulhou um pouquinho mais uma vez.
- Totalmente diferente mas, bem parecido também, para dizer a verdade.
Pensei um pouco.
- Onde seria esse baile?
- Em uma cidadezinha seguindo direeeto a estrada para o sul, depois ao leste. Troy, você e eu. Se quiser podemos provar que não somos psicopatas ladrões de órgãos.
- Se conseguir provar isso me tranquilizaria muito. Mas não sei, daqui a menos duas semanas tenho um compromisso sem falta e...
- Nós te traremos de volta antes disso. Só acho que lhe faria bem vir conosco... Se quiser, é claro.
Nunca fui impulsivo, nunca me joguei de cabeça em nada mas nessa hora parecia ser a coisa certa a se fazer com aquela garota.
- Ok. Vocês me levam até o limite da cidade, se eu decidir que vou com vocês, vamos para o sul, se decidir ir para casa eu desço ali mesmo e espero um ônibus.
- Feito.
Ela estendeu a mão e eu a apertei de leve.
Ficamos de pé e me ofereci para pagar a conta, mas ela fez questão de fazer isso antes de mim.
Passamos pela porta de vidro e, do lado de fora, ela disse.
- À propósito, pode me chamar de Brielle.

A Tempestade Da Cor Dos Teus OlhosWhere stories live. Discover now