A fuga e o medalhão

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Ao cair da noite fomos para nossos quartos. Dara parecia bastante determinada a manter o horário de sono respeitado e assim que me deitei, ainda com as roupas do dia, dormi rapidamente. Meus sonhos não são contos de fadas, nunca foram, geralmente é a imagem de uma menina pequena e indefeza com diversos ramos espinhentos e negros envolvendo ela, ferindo-a de algum modo, eu apenas a observo gritar, se contorcer. Houve vezes também em que os espinhos me envolveram, que a menina tentava me ajudar enquanto eu era perfurada mais profundamente, minha pele rasgada e confundida com os espinhos. As noites com sonos tranquilos eram raros, quase sempre era negra e passava sem nenhuma lembrança, a maioria dos sonhos eram assim, assustadores e agonizantes.
Aquela noite teve seu toque especial, um sonho como tantos outros porém diferente.
O ambiente estava em um completo breu, eu estava parada, tentando ver alguma coisa e então, como se holofotes se ascendessem, eu vi a menininha, em seu vestido branco, os cabelos ruivos curtinhos, o rostinho lindo e delicado, ela não sorria para aumentar sua beleza, já devia saber o que viria a seguir, o que sempre vinha.
Diferente dos outros sonhos ela veio caminhando até mim e parou a no máximo um metro.
- Tudo vai mudar hoje Rya, tudo.
Então os espinhos começaram a crescer envolta de mim, a dor parecia maior do que todas as outras, encarei a garotinha, mas ela não tentou me ajudar dessa vez, parecia determinada, como se aquilo fosse necessário.

◇•°•◇

Acordei esfregando meus braços desesperadamente, ainda sentia os espinhos em mim, então eu vi um movimento vindo da varanda. A lua estava quase cheia e eu podia jurar que vi uma sombra passar por ali. Me levantei, curiosa, e puxei a cortina apenas alguns centímetros até que meu pulso foi agarrado e eu quase gritei, mas minha boca foi coberta, olhei aterrorizada para o lado e meu coração aliviou ao ver minha mãe, ela soltou meu pulso e levou o indicador a boca dizendo-me para fazer silêncio. Soltou minha boca e saiu andando silenciosamente, indicou minha mochila sobre a cama e fez um sinal para segui-la.
Nossos pés descalços não faziam barulho sobre o carpete. O hall do hotel estava vazio a aquela altura da noite e caminhavamos rápido, chegamos no salão principal do hotel, o recepcionista não estava ali, nem um empregado dos vários que vi durante a luz do sol. Ao invés de seguirmos para a saída, Dara foi por outro hall, um que não tinha visto, as vezes ela parava e olhava ao redor, escutava sons inexistentes e continuava. Na sétima porta a direita ela entrou, era uma lavanderia, tinha vários cestos com lençóis brancos, algumas roupas de hóspedes e uniformes, tábuas para passar as roupas, máquinas e mesinhas vazias com pilhas de roupas dobradas do lado. Ela abriu outra porta e estávamos em uma área aberta, com fileiras e mais fileiras de lençóis armados em varais, íamos correndo afastando os panos, passando por baixo e simplesmente os derrubando.
Quando chegamos no fim tinha uma cerca baixa de madeira, Dara subiu em um dos cestos e depois me ajudou a pular a cerca para em seguida faze-lo ela mesma. Continuamos a correr até que estávamos em frente a uma vila, ela entrou em um beco entre os dois últimos grandes prédios me puxando consigo.
- Passarinho, agora nos separamos...
- Pensei que iria só amanhã!
Eu apertava suas mãos bem forte. Não podia acreditar que estava indo ao desconhecido sem ela.
- Nos encontraram cedo demais. Eu vou despistá-los e você entra na vila, no final tem a casa, a mais acabada, de madeira, assim que estiver na porta destranque com a chave e depois que entrar a tranque de novo. Saia pela porta dos fundos, no jardim, já sabe o que fazer daí. Não esqueça...
Ela falou Brittany apenas com os lábios. Ela tirou o cordão com o medalhão do pescoço e o colocou no meu, ele fez um tique metálico ao colidir com a chave.
- Nunca o tire!
Ela beijou minha testa e saiu correndo apenas com um olhar. Depois de alguns segundos eu vi uma sombra passar pela rua e com mais alguns momentos saí da escuridão no beco e entrei na vila. Queria evitar fazer barulho, mas corria acelerada de medo daquela sombra. Eu olhava de um lado para outro, procurando a casa, minha respiração era ofegante, minha cabeça estava latejando com o sangue que percorria meu corpo rapidamente, e apesar da fumaça que se condensava a minha frente sempre que espirava, estava com muito calor e suor escorria pela minha testa.
Assim como Dara tinha dito avistei a casa velha de deteriorada no final da vila, ervas daninhas e algumas trepadeiras adornavam a madeira escura, como que para dar um ar mais sombrio, a lamparina na frente da casa oscilava. Assim que pisei em um dos degraus para subir a varanda ele quebrou. Eu pulei direto para cima e olhei para os lados, na varanda tinha um velho balanço quebrado, uma das correntes mantinha um lado suspenso enquanto o outro estava no chão, as janelas de vidro eram escuras e plantas saiam entre as rachaduras. Senti medo, aquela casa era perfeita para o pior, ou melhor, filme de terror de todos os tempos, talvez já tivesse apresentado grandeza e beleza, mas esse tempo era passado. Peguei a chave tremendo e quase não consegui a encaixar na fechadura, a porta, por mais incrível que parecesse, estava intacta, nova em folha.
Senti que alguém estava se aproximando e o medo por quem quer que fosse se tornou maior que o medo pela casa, então eu entrei, trancando a porta atrás de mim.

Cidade de Magia - Marcada por EspinhosOnde histórias criam vida. Descubra agora