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       31 de março

            O silêncio reinava nesta casa grande, para onde aos nove anos de idade eu viera viver com os meus pais e o meu irmão mais velho. Agora nenhum deles se encontrava perto de mim, sendo que os meus pais estavam nos respetivos empregos, e o meu irmão, que sempre tivera como objetivo viver uma vida recheada de aventuras, viajava por um desses destinos maravilhosos que eu observava nos postais que ele tão prontamente nos enviava todos os meses. Sabia que já não era nenhuma criança e que podia perfeitamente ficar sozinha neste momento tão frágil, mas contudo, ainda continuava a sentir a necessidade de um aconchego ou de um abraço apertado. Era apenas aborrecido permanecer sozinha numa casa tão grande e tão vazia, acompanhada de uma constipação. Pelos vistos, aquela tarde em que apanhara chuva a caminho de casa de Luke, e o dia de ontem, foram suficientes para dar aso a falhas no meu sistema imunitário, e eu passara uma noite muito desconfortável, ardendo em febre. Os meus olhos encontravam-se vermelhos e inchados, e a minha pele gelada, contudo, há menos de uma hora atrás, ainda podia senti-la rosada.

            A caneca que eu segurava entre mãos reconfortava o meu coração adoentado, e aquecia o meu corpo, tão encolhido neste sofá invadido de cobertores e almofadas. Na rua, alguns chuviscos pisavam o chão, provocando um agradável ruido que eu escutava com atenção, enquanto recordava o resto da noite de ontem, quando Luke quisera levar-me a ver as estrelas, mesmo tendo sindo entre paredes. Foi um momento muito bonito e que com certeza eu não irei esquecer, até porque foi precisa muita coragem da parte do loiro para me convidar. Contudo, também havia a parte de Ashton, que não me saia da cabeça, e, por mais que eu tentasse desviar esse pormenor da minha consciência em êxtase, acabava por insistir ainda mais no assunto. Queria apenas parar de pensar, carregar num botão e vaguear até aos confins da minha mente, perder-me numa ilusão e buscar um pouco de consolo às boas recordações patentes na minha vida.

            Todavia, havia algo que me inquietava no meio de tudo isto. Não conseguia desvendar o que era ou ao que se devia, mas, lá bem no fundo, eu tinha noção do erro que estava a cometer. Luke não merecia uma desilusão, e Ashton não merecia uma ilusão. Apesar de tudo, eu sempre quis proteger toda a gente do mal que existe no mundo, e poupá-los à crueldade do ser humano, que por amor consegue ser tão frívolo e egoísta. As pessoas centram-se nelas próprias e esquecem-se dos outros, deixando-os à mercê de uma dor incalculável, superior a tudo o que envolve a Natureza e as leis do Universo. Algo indiscritível e ambíguo, inexplicável e estranho. Nem eu conseguia compreender, por mais que me esforçasse para contornar esse fenómeno. Luke quase me dera um vislumbre disso, ontem, mas eu preferira evitar e parar de dar razões ao meu cérebro irrequieto para bombear a informação como uma função natural do meu corpo, que tão frágil se sentia.

            Depois de engolir um gole de chá e de soltar um grunhido devido às dores de garganta que sentia sempre que algo a arranhava, pousei a caneca em cima da mesa de centro e peguei no comando da televisão, ligando-a no volume mínimo. Apesar de já não me doer a cabeça, queria que aquele silêncio prevalecesse e a chuva pudesse continuar a embalar-me como uma canção. Era acolhedora e lenta, tal como eu gostava que fosse. Porém, antes mesmo que eu pudesse escolher um canal para ver, a campainha tocou, e eu fui obrigada a levantar-me do sofá para abrir a porta. Calcei as minhas pantufas, enrosquei-me num cobertor macio e caminhei vagarosamente até à entrada, rezando para que não fosse algum vendedor ou alguém que pudesse eventualmente incomodar-me.

            – Michael? Lilllian? – os seus nomes escaparam dos meus lábios, assim que puxei a porta. Eles encontravam-se muito encolhidos, junto um do outro, com carapuços na cabeça e expressões de alívio desenhadas no rosto. – O que é que vocês estão aqui a fazer?

Naive ಌ l.hOnde as histórias ganham vida. Descobre agora