O Viajante - Capítulo XX - Mikael - Abril de 1973

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Não foi exatamente algo burocrático eu conseguir acesso aos prontuários antigos. A bem da verdade, ninguém da administração do hospital se importou com meu pedido de checar os arquivos. Já era a segunda semana que eu tinha acesso livre à sala de documentos hospitalares.

A quantidade de registros de março e de abril de 1966 era enorme. Eu demoraria semanas para ler tudo aquilo. Até então minha busca foi um fracasso, mas ainda tinha muito a ser feito.

Enquanto abria as gavetas e pegava os prontuários, me lembrei do Wolfgang. Meu olhar saiu da pasta de registros em minhas mãos e se fixou em um ponto qualquer daquela sala cheia de armários.

Recordei-me do rosto dele, com os hematomas já tão claros que quase sumiam em sua pele, e das covinhas que se formavam nas bochechas quando ele sorria. Lembrei-me também dos cabelos pretos de fios volumosos e bagunçados que, em movimentos bruscos, caíam-lhe sobre a face. Aquele pensamento me incomodava muito. Eu nunca fui uma pessoa sentimental, mas a amizade com o Wolfgang era diferente de todas as que já tive. Eu tinha um medo genuíno de perdê-la e ela ocupava os meus pensamentos.

Eu estava preocupado com a saúde do Wolfgang, além disso. Mas o doutor Antônio me tranquilizou e sua opinião médica era de que talvez o rapaz fosse epilético. Quando relatei os sangramentos, Antônio sugeriu que seria interessante que o Wolfgang investigasse uma possível hemofilia.

— Mikael! — Uma voz ofegante me chamou. Era a Eliza. Olhei-a e saí dos meus pensamentos. A enfermeira estava parada na porta. — Chegou uma emergência pediátrica com fratura exposta causada por um acidente de bicicleta.

Esse era o meu ponto fraco enquanto enfermeiro. Atender crianças no pronto socorro me atormentava de modo que eu passava dias me recordando dos atendimentos e sofrendo com pesadelos.

Eliza saiu pela porta. Coloquei o prontuário, que eu segurava, na estante do armário e também saí da sala apressadamente.

Encontrei uma maca sendo empurrada pela equipe de enfermeiras. Por eu ser o único homem, me prontifiquei a empurrar a maca no lugar delas. Encarar a criança sobre o leito fez o meu corpo gelar.

Era um menino da idade do Samuel. Ele estava chorando. A tíbia direita tinha se partido e rasgado os músculos e a pele, ficando exposta. Uma mulher nos seguia em meio a gritos desesperados.

— Alguém ajuda ele! Meu Deus, ajuda meu filho! — Ela chorava. Mas eu não podia parar para tentar acalmar a mulher.

Doutor Antônio se aproximou de nós e olhou para a criança.

— Sem dúvida isso é caso de cirurgia. — A voz do médico era calma. Ninguém ali se assustava com as emergências, era uma rotina.

A mãe da criança gritou ao ouvir aquilo e, contagiado pelo desespero da mãe, o menino gritou ainda mais.

— Alessandra, ajuda a mãe. — Antônio ordenou. A enfermeira irreverente assentiu e se aproximou da mulher, tocando-lhe o ombro. Bastou isso para que a pobre genitora desabasse em soluços. Alessandra a abraçou e a mulher chorou nos braços dela.

Eu precisava continuar. Empurrei a maca até uma sala de emergência. Junto de mim, estava Eliza, doutor Antônio e uma enfermeira chamada Míriam, que devia ter a mesma idade que o médico.

— Cadê minha mãe? — A criança gritou. Seus gritos eram altos e agudos, repletos de desespero. — Tá doendo! Cadê a minha mãe? — Quando alguém tentava o tocar, o menino se debatia e se esquivava.

— Míriam, a profilaxia.  — A mulher de meia idade assentiu e saiu, às pressas da sala, para trazer os antibióticos profiláticos. Míriam era experiente, já sabia de cor quais medicações e vacinas eram usadas em cada tipo de profilaxia. — Mikael, faz a analgesia com opióide pra que a Eliza consiga fazer a imobilização da perna e a higienização. O paciente tá muito agitado.

Filhos da EntropiaWhere stories live. Discover now