O Viajante - Capítulo IV - Wolfgang - Janeiro de 1973

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O maldito lugar já estava ficando familiar. Eu sonhava com aquele cenário todas as noites. E o enfermeiro estava sempre lá, olhando-me assustado.

Ele estava parado, fitando ao redor, como se procurasse alguma explicação. Meus olhos perceberam uma movimentação distante. Vultos caminhavam entre a névoa. O Mikael pareceu não os enxergar. Mas eu os via, nitidamente. Cada vez mais próximos e se movendo. Caminhei em direção a um vulto que parecia a silhueta de uma mulher. Meus pés tinham pressa em a alcançar. O enfermeiro ficou para trás.

E eu andei… Andei muito….

Andei e ainda não era capaz de alcançar aquela silhueta na neblina…

Até que abri os olhos e vi o teto do meu quarto. Mais um pesadelo. Dessa vez, algo diferente aconteceu. Eu vi vultos em forma de pessoas. Tudo aquilo estava ficando cada dia mais estranho.

Tentei respirar fundo e, nesse momento, notei minha garganta dolorida. Há muito tempo eu não adoecia. Entretanto, desde o dia que desmaiei, sentia-me mais fraco. Talvez já fosse um sinal daquela inflamação na garganta.

Minha voz estava rouca e fumar era doloroso. Porém eu não conseguia ficar sem os cigarros. Meu corpo tremia e meu coração acelerava caso eu não fumasse. Acendi um cigarro e fumei, fechado no meu quarto, recostado na cômoda. As cinzas caíam no cinzeiro ao lado do retrato do casamento dos meus pais. Fitei o rosto da minha mãe. O nome dela era Rosa. Queria saber para onde ela tinha ido.

O cigarro todo se desfez. Saí do quarto, fui ao banheiro e depois para a cozinha. Não achei o meu pai. Peguei um limão na fruteira e fiz um chá com aquela fruta ácida. Não tinham pães para eu comer naquele desjejum. Sentei-me à mesa e tomei o chá, enquanto franzia nariz para toda aquela acidez.

Domingo era um dia de descanso. O único dia que eu não trabalhava no bar. Silva o gerenciava sozinho no primeiro dia da semana.

Ouvi um barulho no portão e ouvi a voz do meu pai… e dela.

— Puta que pariu, nem fodendo. — Tia Norma era a irmã do meu pai. Ela cuidava de mim quando eu era uma criança bem pequena e ainda não conseguia frequentar uma escola. Wilhelm me levava para a casa dela e ia trabalhar. Norma me tratava bem, mas com certa frieza. Na época, eu não percebia sua indiferença.

Os meus primos, Ana e Joaquim, e eu éramos distantes. Minha doce prima Ana até tentava brincar comigo na época, entretanto, eu era uma criatura estranha desde pequeno. Um exemplar de filhote de aberração.

A porta da casa se abriu e ouvi meu pai e tia Norma se aproximando. Eles chegaram na cozinha. Wilhelm carregava uma sacola de pães.

— Bom dia, Wolf. — Norma me saudou secamente. Olhei-a com o canto dos olhos. Era uma mulher bonita. Parecia-se com meu pai. Cabelos castanho-avermelhados, olhos azuis, postura altiva e traços fortes. Entretanto, a força de seus traços não lhe dava um aspecto masculino. Pelo contrário, ela parecia uma versão mais velha de alguma atriz de Hollywood. Meu pai se tornava um pequeno plebeu perto dela, ainda que se parecessem. Porém, o que Norma tinha de bonita, tinha de intragável.

— Bom dia. — Cumprimentei-a com a mesma apatia que ela me cumprimentou.

— Tá tudo bem, Wolfgang? — Wilhelm perguntou, olhando-me com preocupação. Ele puxou uma cadeira para Norma se sentar e se manteve de pé.

— Eu tô com dor de garganta. — Respondi, bebericando o resto do chá.

— Deve ter sido a chuva que você pegou naquele dia. — Meu pai palpitou. Involuntariamente, olhei para minhas mãos. Os ferimentos já estavam sarando. Tentei não pensar naquele dia e nem nos sonhos perturbadores.

Filhos da EntropiaWhere stories live. Discover now