O Viajante - Capítulo VII - Mikael - Fevereiro de 1973

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- Vai encher o saco de outro! - Ouvi a voz do Wolfgang dizer. Supus que ele tinha aproximado o telefone do rosto. O seu jeito irreverente de falar o tornava estranhamente simpático. - Desculpa. Eu não tenho telefone em casa. Tô ligando do trabalho. O meu patrão veio encher o saco.

- Tudo bem. - Uma ameaça de risada me escapou.

- Eu tava falando do quê mesmo?

- Que identificou o vulto da mulher na neblina. E que tinha outra coisa.

- Ah, é. Tem vários vultos. Não é só o dela. Não dá pra explicar por aqui. É coisa demais pra contar.

- A gente pode falar disso naquele café...

- Tá. - Pensei que ele fosse dizer mais alguma coisa. Mas Wolfgang não falou nada.

- Amanhã às 6h?

- Sim, pode ser. - E mais uma vez, esperei ele falar. Não seria educado eu pedir para desligar, foi o Wolfgang que me ligou. Entretanto, ele não falava nada do outro lado da linha.

- Wolfgang? - Chamei-o.

- Oi... Ah, é... Preciso desligar. - As reações dele eram inesperadas. Não entendia exatamente o porquê dele ser daquela maneira. Mas o seu jeito de ser era diferente da maneira de agir das pessoas que eu convivia. - Tchau.

- Tchau. - Respondi. O rapaz desligou em seguida.

Voltei para a cozinha e terminei de jantar com os meus pais e meu irmão. Após a refeição, Isaac foi assistir televisão e Sara arcou com a tarefa de arrumar a mesa e lavar a louça. Ela nunca aceitava a minha ajuda para isso.

Entretanto, eu achava margem para ajudar a minha mãe em outra tarefa: colocar o Samuel para dormir.

- Hora de dormir, Samuca. - Falei para o meu irmão ao chegar até a sala de estar, vindo da cozinha, após as recusas da minha mãe ao pedir para ajudá-la com a louça. Samuel estava sentado no sofá olhando de relance para Isaac. Nosso pai, por sua vez, estava absorto na novela que a televisão transmitia.

- Não! - Samuca protestou. - Tá cedo!

- Já são 8 horas. Depois não quer levantar pra ir pra escola e fica reclamando.

- Só mais um pouquinho... - Pediu.

- Cala a boca, Samuel. - A voz de Isaac reverberou séria e filme. - Tô tentando assistir essa merda. - E acenou com a cabeça para a televisão.

Encarei o meu irmão e vi seu olhar assustado.

- Vem... - Chamei-o em um sussurro. Samuel desceu do sofá. Andamos até o corredor em que ficavam os quartos e o banheiro e apontei, com o dedo, para a porta do banheiro. O menino entrou no cômodo indicado.

Fui até o seu quarto, peguei o pijama da criança e o deixei pendurado na maçaneta da porta do banheiro em que ele tomava banho e se preparava para dormir.

Samuel abriu a porta discretamente e pegou aquele conjunto de roupas - tratava-se de uma camisa e de uma calça, ambas verdes, feitas de algodão.

Ele demorou mais alguns minutos lá dentro, enquanto eu o esperava no corredor. Por fim, Samuel abriu a porta e saiu vestido com o pijama e com gotas de água nas pontas dos cabelos e no rosto. Ele segurava as roupas sujas em suas mãos rechonchudas.

Abri a porta do seu quarto, peguei sua roupa suja e a coloquei no cesto. Samuel se deitou na cama e se envolveu no cobertor. Sentei-me no canto do colchão e o olhei nos olhos. Estivemos, por todo esse tempo, em silêncio.

- O pai tá bravo comigo? - A criança quebrou o silêncio.

- Ele tá bravo com todo mundo a todo tempo.

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