26 • Comprimento limitado

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"De nada serve ponderar e ficar se preocupando, as pessoas não agem do mesmo modo que pensam, mas dão cada passo sem refletir, obedecendo ao que manda o coração."

Hermann Hesse

Pela primeira vez, depois de todo um circuito de viagens no qual nos evitamos em quase todo tempo, jantávamos juntos

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Pela primeira vez, depois de todo um circuito de viagens no qual nos evitamos em quase todo tempo, jantávamos juntos. E em nossa cidade natal, livres das armadas do trabalho, sem sermos forçados pela convivência obrigatória imposta pelos compromissos.

Apesar de estarmos nesse bote furado há praticamente dois meses, o jantar se consolidava como nossa primeira tentativa de realizar uma atividade civilizada, facultativa, juntos.

Nervosa, feito adolescente em primeiro encontro, sei lá por qual motivo, revirei a comida no prato, enrolando para comer, e beberiquei o vinho como se manipulasse um conta-gotas. Tudo isso com movimentos robóticos, antinaturais.

Ao menos a esquisitice não era item exclusivo.

Acometido pela mesma estranheza, ele também fazia pouco caso do jantar em si. Alheio a mim, Igor prestava mais atenção nas mangas do paletó e, religiosamente, checava as horas a cada minuto. Parece até que tem um lugar melhor pra estar. Ou alguém melhor pra estar... dentro. Deve sentir falta das amiguinhas.

Temi que o sentimento de inadequação fosse tomar conta do nosso projeto de jantar e estragar nosso lance — por si só, tão inusitado quanto aquele tiro no escuro. Inventar de interagir com roupas? A maior furada. O sr. Asimov, por sua vez, me surpreendeu de novo — falando justamente sobre roupas.

— As estampas coloridas — citou-as, de repente. — De onde veio a preferência? — interrogou, com uma inusitada curiosidade a respeito do meu estilo.

— Mainha — esclareci, erguendo a cabeça, subitamente engajada em algo que mal podia chamar de encontro. — O arco-íris do guarda-roupa dela sempre me fascinou.

— Então a senhora Nkosi é a mulher de bom gosto da família? — provocou-me, desinibido.

— Era — corrigi-o, com um pontada de pesar. Sempre ficava meio melancólica, saudosa, quando minha mãe se tornava o assunto da conversa. — Ela faleceu quando eu tinha 11 anos.

— Desculpa. Não foi minha intenção tocar num assunto sensível — retratou-se, preocupado com minha reação.

— Tudo bem — menti, com o intuito de afastar o climão que nos espreitava desde o início da noite. — Não foi nada de mais. Eu só...

— Você é uma péssima mentirosa — ele comentou num tom caloroso, extremamente diferente do seu estilo glacial, meio Thomas Shelby, de ser. — É normal se entristecer com assuntos sensíveis, senhorita Nkosi. — Ele esticou as mãos, alcançou as minhas, segurando-as sobre a mesa, e apertou-as de leve.

Sua compreensão assombrosa, dando as caras mais uma vez, me atingiu como um soco na boca do estômago. No mesmo instante, uma lágrima se formou no canto do meu olho. Um misto de emoções engarrafadas, enterradas no fundo do meu ser, ascenderam à superfície. A comoção pela atitude humana de sua parte me virou do avesso.

— Não é normal ficar chorando na frente dos outros — rebati, retraindo minhas mãos, pegando o guardanapo em meu colo e enxugando as lágrimas com ele.

— "Os outros", nesse caso, seria eu? — Ele arqueou uma sobrancelha, entretido com a ideia de eu ainda considerá-lo um "outro", alguém estranho, apesar de termos compartilhado a mais variadas intimidades ao longo das semanas.

— Você entendeu — desconversei, doida para enterrar o assunto sob uma pedra enorme e nunca mais revisitá-lo.

Ele anuiu com um gesto de cabeça antes de lançar sua pedrada.

— Bom — ele apanhou sua taça e bebericou o vinho com a maior calma, num rodeio desnecessário para chegar ao seu ponto, somente para me atiçar —, ela tinha um ótimo olho pra moda, ao contrário da filha, que só acerta quando segue os passos dela — redirecionou a conversa de modo cômico e partiu para o insulto.

— Ah, pronto! Era só o que me faltava! O senhor do esporte fino que anda pra cima e pra baixo com modelo seminua querendo opinar no que visto ou deixo de vestir... — Bufei, incrédula. Ele conseguira me fazer ir de 0 a 100 em um piscar de olhos.

— No que deixa de vestir? Jamais — assegurou-me, franco, com um sorriso pleno. — Agora o bazar solidário do Péricles...

Petulante do caralho. Tá fazendo isso de propósito. É brincadeira!

— Se as minhas roupas te incomodam tanto, por que não as tira? — retruquei, bruta, sem processar minha fala. Sem repensá-la.

Soltara meu primeiro pensamento, um mistura de resposta agressiva e desejo do momento. A fala saíra de mim para revidar sua implicância, também para traduzir as vontades não tão secretas de alguém que sabia bem que apenas nos entendíamos quando estávamos sem roupas. Nem eu acreditava no que havia falado.

— Só se for agora — prontificou-se, já sinalizando para o garçom e pedindo a conta.

— Só se for agora — prontificou-se, já sinalizando para o garçom e pedindo a conta

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O que aconteceu depois? Fica no ar... Ou melhor, na imaginação de vocês porque a autora tá se fazendo ( ͡~ ͜ʖ ͡°)

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Beijos mil! ✨

Destino MotoCiclistaWhere stories live. Discover now