O Viajante - Capítulo II - Wolfgang - Janeiro de 1973

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— Como se um folgado feito você fosse ficar sem o empregado.

— Olha o respeito, moleque! Vai fazer café. Tá chegando gente.

Para me livrar daquela voz alta e irritante do Alberto, acatei a ordem e fui preparar o café para depois atender os poucos clientes que chegavam ali.


Por volta do fim da manhã, o movimento diminuiu e eu pude respirar. Apoiei os cotovelos no balcão e tentei recuperar o meu fôlego. Um rádio sobre uma mesa de metal noticiava alguns acontecimentos, mas minha atenção não se voltou ao que era dito. Todo aquele barulho só fazia me deixar mais cansado.

— Aí, Grilo! — Silva bradou. Ele só sabia falar gritando. — Pega uma cervejinha pra mim. — O homem calvo estava sentado em uma cadeira ao lado do rádio.

— São 10h da manhã. — Respondi de maneira letárgica, esfregando os olhos. O que aconteceu no dia anterior fez com que eu não dormisse bem. Minha cabeça estava doendo e os bocejos me escapavam.

— E eu com isso? — Mais uma vez, riu de maneira ruidosa. — Ali, chegou gente. Vai atender! — Meus olhos permaneceram fechados enquanto eu os esfregava com os dedos. A lembrança do ônibus me atormentava e se repetia.

— Grilo! — O homem gritou mais novamente. Abri os olhos e vi aquele único cliente no bar vazio.

Fui até a mesa em que ele estava. Tratava-se de um rapaz alto e com cabelos cor de areia. As madeixas loiras e curtas estavam levemente emaranhadas e ele usava uma camisa azul muito bem passada e calças de linho bege. O rosto era angular, com o maxilar bem delineado. Tinha lábios finos  e um nariz reto. Não usava barba e parecia jovem, com mais ou menos a minha idade. Seu semblante estava tão cansado como o de qualquer pessoa que aparecia por ali de manhã.

— Quer alguma coisa? — Indaguei de maneira automática.

Ele levantou os olhos e me encarou.  Meus tímpanos doeram com o chiado que os invadiu. A minha visão escureceu e minhas pernas e meus braços perderam a força.

— Ei! — Uma voz distante me chamou. Julguei ser a voz do rapaz alto. Senti alguém me segurar, impedindo que eu caísse no chão. Pude escutar os gritos ininteligíveis do Silva.


Minhas costas estavam contra o chão frio e duro. Abri os olhos. Acima de mim, vi o rosto de Silva e do rapaz. Os olhos castanhos daquele rapaz e suas feições firmes me pareciam estranhamente familiares.

As vozes de ambos estavam distantes demais, eu não conseguia os entender, apenas percebia os lábios deles se movendo.

— Tá tudo bem? — O rapaz perguntou.

— Frescura! Isso daí é falta de comida. — O dono do bar respondeu por mim. — Levanta aí, Grilo.

— Não, ele não pode levantar de uma vez. — O jovem rebateu.

— Ficar aí o dia inteiro é que ele não vai. — Silva caminhou até mim, segurou-me por debaixo dos meus braços e me levantou, colocando-me uma cadeira.

O rapaz alto ficou de pé ao lado da cadeira que o patrão calvo me colocou. Seus olhos permaneceram sobre mim.

— Desculpa aí, meu bom. Esse magrelo é cheio de coisa mesmo. Você vai querer pedir o quê? — Meu patrão perguntou para o cliente. Silva não tinha qualquer tipo de tato social.

— Dois cafés e pão na chapa. — Não só a face do rapaz, mas sua voz também me parecia conhecida. Ouvi-la me deu a sensação de déjà-vu.

— É pra já. — Alberto me olhou e foi até a cozinha. De certo, esperava que eu me levantasse logo dali e voltasse a trabalhar.

Filhos da EntropiaWhere stories live. Discover now