Capítulo 6: Reza - Rita Lee

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Nas quatro primeiras vezes que a música tocou, Aziraphale não se importou – ele até apreciou a escolha musical de Crowley. Nas quatro vezes que se seguiram ele começou a se incomodar. Nas outras quatro, que fechavam uma hora da mesma música sendo tocada ininterruptamente, Aziraphale cogitou arrancar os próprios cabelos. Ele não tinha muito conhecimento sobre os horários de seu vizinho mas, levando em consideração que ele chegava em casa por volta das cinco da manhã, era de se esperar que ele saísse para trabalhar em um horário próximo das nove. O relógio já marcava 22:00, e foi nesse momento que Aziraphale começou a se desesperar.

Numa matemática básica, ele calculou que, caso a música tivesse cerca de cinco minutos de duração (coisa que ele havia cronometrado na sexta vez que a música tocou), e seu vizinho chegasse às cinco da manhã para desligá-la, a mesma música tocaria cerca de 108 vezes naquela madrugada. Em uma matemática mais básica ainda, ele chegou à conclusão de que perderia completamente a sanidade dentro das próximas 7 vezes.

"Ele não deixaria a mesma música tocando a madrugada inteira só por uma discussão boba de alguns dias atrás." Aziraphale pensou, andando em círculos pela sala de seu apartamento. "Não, nenhuma pessoa em sã consciência faria isso.". Seu alívio durou pouquíssimos segundos ao ser lembrado que seu vizinho não era, de maneira alguma, uma pessoa em sã consciência.

Talvez ele mesmo tivesse extrapolado um pouco – olhando em retrospecto, colocar "Rindo à Toa" do Falamansa para tocar pela manhã (e cantar junto) provavelmente não tenha sido uma ideia brilhante para apaziguar a tensão que se criava no prédio naqueles últimos dias. Talvez ele tenha, realmente, ido longe demais. Aziraphale nunca teve problemas em admitir quando estava errado, nem mesmo quando suas reações eram desproporcionais às situações das quais elas eram advindas.

Ele teve, por volta das quatro e meia da manhã, uma clareza tão grande de toda a situação que sentia, de alguma maneira, que a resposta tinha aparecido por intervenção divina. Ele seria a pessoa sensata e encontraria uma saída racional para tudo aquilo. Se dirigindo ao elevador, Aziraphale praticou seu sorriso mais amigável, seu olhar mais dócil e seu tom de voz mais simpático, tendo agora a convicção que apenas uma noite de sono inexistente é capaz de proporcionar: de que a situação toda era simples demais para ser verdade, e seria resolvida em pouquíssimos instantes.

Mesmo sabendo que o apartamento que procurava era abaixo do seu, o que lhe dava uma certa noção de qual deveria ser, Aziraphale teve receio de não conseguir distinguir qual era a porta certa. Esse medo se dissipou no instante em que a porta do elevador se abriu, obviamente – só era preciso seguir o som, que aumentava a cada passo dado.

Ele ficou parado ao lado do capacho (um retângulo azul com a imagem do que ele imaginava ser uma cabine de polícia britânica, com os dizeres "Maior por dentro" em cima, aguardando a chegada do dono da casa. Não demorou muito para que a porta do elevador se abrisse novamente.

– Ora, ora, ora... – Aziraphale escutou atrás de si uma voz embebida em sarcasmo, e sequer precisou se virar para saber que era Crowley. – Eu poderia dizer que é uma visita inesperada, mas seria mentira. – Crowley sorriu, dando de ombros. – Também poderia perguntar o motivo da agradável visita, mas eu tenho a sensação que nós dois sabemos. – Seu sorriso alargou de uma maneira que Aziraphale jamais vira antes.

– Bom dia! – Aziraphale tentou manter o otimismo e sua maior arma (um rosto que exalava simpatia e camaradagem por onde quer que passasse). – Sim, eu vim aqui para...

– A música está boa, meu anjo? Você gosta tanto de escutar algo pela manhã que eu pensei em entrar na onda também. – Crowley cruzou os braços e se apoiou na parede. – Eu preciso dar o braço a torcer, um bom som às cinco da manhã realmente traz uma paz interior, não é?

Aziraphale mal conseguia escutar o que seu vizinho falava porque, embora ele gritasse para ser ouvido, Crowley não fazia questão alguma em levantar seu tom de voz. Ele parecia ignorar completamente a música, e aparentava se divertir em vê-lo dando seu máximo para ouvir o que ele tinha a dizer (ou tentando ler seus lábios).

– Eu vim falar da música! – Aziraphale gritou – Eu acredito que nós podemos resolver a situação e...

– Não, meu anjo. – Crowley o interrompeu – Nós já resolvemos a situação. Está acabado. É isso.

Os dois passaram uns segundos se encarando, Aziraphale com um olhar confuso em seu rosto e Crowley com um sorriso vitorioso. De todas as situações das quais Aziraphale imaginou e se preparou, nenhuma chegou minimamente perto da reação da qual estava diante naquele momento.

– O que exatamente você quer dizer com isso? Porque eu sinto que o meu "acabou" não é o mesmo que o seu "acabou". – Aziraphale franziu o cenho.

Crowley tirou uma chave do bolso e abriu a porta do apartamento. Com o chaveiro de cobra ainda balançando na fechadura junto das demais chaves, ele entrou na sala para desligar, finalmente, a caixa de som. Sem saber se tinha sido convidado para entrar, Aziraphale não se atreveu a mexer, espiando apenas de relance o ambiente, que era muito diferente de sua própria casa – apenas com o canto de olho, ele foi capaz de contar cerca de dez plantas diferentes.

– O meu acabou quer dizer que acabou. Simples assim. – Crowley voltou para perto da porta. – Você sentiu o quão horrível é tentar dormir com uma música alta tocando no seu ouvido e eu tenho certeza que não se repetirá novamente.

– Mas não foi muito justo, não é? Quer dizer, minha música dura duas horas no máximo, a sua durou a madrugada toda! – Aziraphale riu, tentando melhorar o clima que piorava a cada instante.

– Realmente, não foi muito justo mesmo... A minha música durou uma madrugada e a sua música tem durado dez anos! – Crowley respondeu exasperado – E digo mais, na minha música pelo menos não tinha ninguém que acha que sabe cantar tentando cantar junto.

Aziraphale sentiu seu sangue congelar e, instantes depois, ferver. Sua ideia era uma conversa pacífica e agradável, mas que tinha virado, de alguma maneira, uma distribuição gratuita de ofensas. Ele lembrou nitidamente os motivos que o levaram a não ceder ao pedido inicial de seu vizinho: igual ao primeiro encontro dos dois, Crowley não estava aberto a dialogar. Desde o primeiro dia Aziraphale tentou uma conversa amigável, mas Crowley se recusou. Toda a camaradagem e companheirismo que existiam em Aziraphale se esvaíram.

Tanto Crowley e Aziraphale começaram a escutar uma música ecoando baixinho na mente. O que eles não sabiam, e não tinham como saber, é que eles pensaram na exata mesma música. Uma música que encaixava perfeitamente na situação da qual eles estavam vivendo – isso porque, obviamente, os dois achavam que estavam certos e ambos acreditavam que o outro estava tremendamente errado e era a pior pessoa da qual tiveram o desprazer de conhecer.

[Deus me salve da sua praga; Deus me ajude da sua raiva]

– Bom, acho que nós teremos que levar a situação aos superiores. – O tom de voz de Aziraphale era como gelo.

– Nós estamos num prédio, não em um time de futebol ou uma empresa, não existem superiores... – Crowley disse, enquanto Aziraphale se dirigia ao elevador. – Se você está chamando aquele lá de superior você é realmente mais maluco do que eu imaginei. – Crowley cruzou os braços, olhando para Aziraphale, que permanecia em completo silêncio no elevador.

Aziraphale ergueu o braço para segurar o elevador, ainda em silêncio.

[Deus me imunize do seu veneno; Deus me poupe do seu fim]

– Seu braço pode cair de tanto ficar levantado, eu não vou subir! Boa sorte lá em cima. – Era impossível saber o que incomodava mais Crowley: o silêncio formado entre eles, o rosto impassível de Aziraphale ou os olhos azuis penetrantes que o encaravam tão intensamente que ele sentia que entraria em combustão a qualquer momento.

[Deus me acompanhe; Deus me ampare; Deus me levante; Deus me dê força]

Após alguns instantes que pareceram horas para ele, Crowley cedeu. Sua caminhada até o elevador foi repleta de bufos, balanços de braços e pés arrastando. 

[Deus me perdoe por querer que Deus me livre e guarde de você]

Revirando os olhos e ainda se recusando a falar, Aziraphale apertou o botão, e os dois começaram a subir.

Good Omens - Entre Tapas e Beijos (Ineffable Husbands)Where stories live. Discover now