Capítulo 3: Erva Venenosa - Rita Lee.

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Crowley não se sentia mal pela situação constrangedora daquela manhã. Na verdade ele até se sentia bem, de uma certa maneira. Ele fez o que considerava certo, e os meios não importam tanto quando se pensava nos resultados de fazer a coisa certa. Foram dez anos de noites – na verdade dias mal dormidos, e ele não sabia exatamente o que o impediu de falar algo mais cedo.

No rádio de seu carro (um Bentley 1933) seguindo em direção à boate, tocava Erva Venenosa, de Rita Lee. [Parece uma rosa, de longe é formosa]

Talvez os motivos para que ele tenha ficado em silêncio tenham sido os mesmos que mantiveram todos os moradores em silêncio por tanto tempo: o senhor Fell (como ele próprio disse para Crowley que deveria chamá-lo) parecia uma pessoa boa. Uma pessoa fácil de se gostar e uma pessoa fácil de se relevar as horas de cantoria matinal.

[Venenosa, ê, erva venenosa, ê. É pior do que cobra cascavel, seu veneno é cruel] 

Não, isso não fazia sentido. Eles sequer se conheciam, e Crowley não aceitaria horas de barulho diários de uma pessoa da qual ele não conhecia, realmente não era do seu feitio. Ele sabia que as outras pessoas normalmente o liam como alguém ruim e ranzinza, e ele ligava pouco para como as pessoas o liam – mas com as opiniões do senhor Fell parecia haver algo diferente. Ele não queria ser lido pela pessoa mais agradável do prédio (como diziam as línguas) como alguém completamente detestável. Seria por isso os dez anos em silêncio?

[Se porta como louca, achata bem a boca. Parece uma bruxa, um anjo mau, mau, mau. Detesta todo mundo, não pára um segundo]

Ao estacionar o Bentley próximo ao prédio da boate em que trabalhava, Crowley resolveu parar de pensar no assunto e focar no trabalho. Não era um trabalho ruim, mas isso não queria dizer que ele gostava. O dinheiro era bom, as horas passavam rápido, mas ele sempre saía de lá com uma sensação estranha de que estava perdendo oportunidades de viver, de experimentar e conhecer coisas novas. Mas aí ele chegava em casa, dormia, esquecia esse sentimento e tudo se repetia no dia seguinte.

Além do mais, o trabalho fica cada vez mais fácil: após um tempo você aprende novas práticas e métodos de intimidação capazes de manter qualquer um na linha. Crowley gostava dessa parte – saber que você está, de uma maneira ou outra, ajudando a manter as pessoas ao redor seguras, e pouco importava se às vezes ele precisava levantar a voz para uma ou duas pessoas – ele estava fazendo a coisa certa, e mais uma vez os meios justificavam os fins. Crowley se colocou à postos, iniciando seu expediente.


Às cinco da manhã, enquanto todas as luzes eram acesas, as últimas pessoas saíam cambaleando e protestando rua afora e os funcionários já terminavam a limpeza do estabelecimento, Crowley entrou novamente no carro, cansado e sonhando com os sonhos que poderia ter – sonhando poder dormir por cem anos, apenas para ver como seria.

– Definitivamente não teremos problemas com som dessa vez, não é? – Ele disse em voz alta, talvez para si mesmo, talvez para o carro. – Não, tenho certeza que não. Tudo foi resolvido da melhor maneira.

Aguardando o elevador no térreo, por volta das 05:20, Crowley viu uma mulher descendo as escadas segurando uma caixa que parecia estar cheia de caixas de leite variados, açúcares e talvez pacotes de chá (era difícil enxergar com os óculos escuros que ele sabia que não precisava utilizar dentro do prédio, mas estava acostumado demais a usar no serviço). Nenhum dos dois disse uma palavra para o outro, apenas trocaram um singelo cumprimento com a cabeça.

Entrando no elevador, ele começou a listar as coisas que faria primeiro ao chegar em seu apartamento: a primeira coisa sempre era regar as inúmeras plantas que mantinha na sala, e a segunda era regar as inúmeras plantas que mantinha na varanda, que precisavam de mais cuidados e muita exposição ao sol.

– Bom dia, plantas. – Crowley disse, ao abrir a porta do apartamento. Ele encheu o regador que deixava sempre próximo da pia da cozinha e iniciou a parte mais importante do seu dia. Todo o processo demandava um certo tempo, porque também era o momento em que ele analisava o que cada planta precisava, quais plantas precisavam trocar de vaso, quais plantas precisavam de poda, etc.

– Você não deveria estar aqui. – Crowley disse, olhando para uma begônia. – Perigosamente perto do sol e com um alto risco de ser regada mais do que o necessário. Para lá, imediatamente. – Ele apontou para o lado oposto da sala, como se a begônia fosse capaz de se mover sozinha. Ao se dar conta que ela não se moveria sozinha, ele a levou para o local mais afastado da varanda. – Pronto, muito mais seguro.

Passando para as plantas da varanda, Crowley manteve sua atenção por um tempo considerável na sua favorita: a ave-do-paraíso. Talvez a ideia de cuidar de uma planta que pode chegar até sete metros não tenha sido a melhor opção para uma varanda tão pequena quanto a dele, mas toda a beleza que a flor trazia fazia com que ele se esquecesse desse detalhe. Aquela ave-do-paraíso tinha cerca de dois metros e precisava de muita atenção – coisa que Crowley nunca teve problema. Era realmente um desafio cuidar dela, mas ele adorava desafios assim.

– Talvez eu devesse te trocar de vas... [Tô numa boa, tô aqui de novo. Daqui não saio daqui não me movo, tenho certeza, esse é meu lugar].

Crowley olhou o relógio em seu pulso. 05:45 da manhã.

– Não é possível, eu achei que tínhamos resolvido. – Ele disse estupefato, olhando para a ave-do-paraíso. – Sim, eu sei, agora ele começou mais cedo... Você acha que eu fiz algo para merecer isso? Você acha que eu joguei pedra na cruz, salguei a santa ceia...? Não se atreva a responder. – Crowley apontou um dedo acusatório para a planta, que obviamente não respondeu e nunca se atreveria a responder.

– EI! – Crowley começou a gritar, olhando para cima. – EI, VOCÊ SABE QUE É COM VOCÊ! NÃO SÃO NEM SEIS DA MANHÃ AINDA.

A música, para o infortúnio de Crowley, continuou a tocar, mas seu vizinho não apareceu na varanda dessa vez, sequer respondeu aos gritos vindos do andar de baixo.

Crowley começou a gritar palavras desconexas, imaginando que isso faria com que senhor Fell (como ele mesmo tinha dito que Crowley deveria chamá-lo) fosse até a varanda, nem que fosse para se certificar de que seu vizinho tinha finalmente enlouquecido, mas a música continuou a tocar, assim como o silêncio de senhor Fell permaneceu.

A única vez que o homem de cabelos loiros-quase-brancos disse uma coisa foi quando ele cantou com a música "HA HA HA HA HA! MAS EU TÔ RINDO À TOA".

E foi então que Crowley se lembrou que, no dia anterior, e no calor do momento, ele havia dito que senhor Fell tinha feito um inimigo para a vida. Ele não tinha pensado muito sobre essa fala, porque acreditava que tudo já estava resolvido e não haveria mais nenhuma complicação, mas ele percebeu que estava enganado. Seu vizinho tinha realmente levado suas palavras ao pé da letra, e tinha decidido que também seria um inimigo para Crowley. 

Ele definitivamente tinha subestimado seu oponente, mas não recuaria agora. A única coisa que o homem no andar de baixo não imaginaria nem em milhares de anos, é que a declaração de guerra seria feita às cinco e quarenta e cinco da manhã, ao som de Rindo à Toa, do Falamansa.

Good Omens - Entre Tapas e Beijos (Ineffable Husbands)Where stories live. Discover now