Mudanças

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Camila:

Hoje é dia 12 de abril e estamos de mudanças. Vamos para Miami, Flórida.

Sofi era residente no hospital infantil do Câncer aqui em Geórgia, mas na Flórida encontramos um outro com mais qualidade e médicos bem mais capacitados, portanto, é para lá que nós vamos. Graças, é claro, aos ocultos que ajudam financeiramente casos de crianças doentes. Meus pais compraram um apartamento num preço legal bem próximo ao local onde Sofia ficará, fora que minha mãe tem primos que moram no bairro vizinho. Isso é bom porque eles me ofereceram um emprego na loja de móveis na qual são donos (minha família por parte de mãe sempre trabalhou em lojas de móveis, na qual são proprietários de algumas unidades}, então eu vou poder trabalhar de segunda à sexta e ter meu próprio dinheiro no fim do mês para ajudar meus pais nas despesas de casa, já que só um pouco menos da metade do salário do meu pai vai para o hospital.

As paredes brancas do meu quarto que costumavam ter quadros coloridos por todos os lados estão vazias agora, é hora de me despedir da minha antiga casa. Espero me acostumar com a rotina do prédio, até porque eu nunca fui muito fã de elevadores. Fiquei parada fitando todos os cantos do meu cômodo preferido e me recordando de tantos outros momentos. Vou sentir falta disso tudo; das pessoas; dos meus amigos mai próximos, como Sandra e Marielle. Mas o que posso fazer? Despedidas faz parte do conjunto de coisas que é a vida.

Eu estava inerte naquele ar nostálgico quando escutei o som suave da voz de criança me chamar:

- Kaki, papai disse para eu perguntar se você já está pronta para ir. - Sofia se aproximou de mim e eu abaixei para ficar a sua altura. Seu sorriso estava sempre ali.

- Já estou pronta, Sofi, você está?

- Estou... sabia que no hospital de Miami tem uma brinquedoteca gigantesca?! - Ela exclamou empolgada. Deixei um beijo em sua testa e me levantei.

- Sabia sim. Lá tem até sala de música, Sofi! Você vai amar, eu tenho certeza! - Ela sorriu com todo seu jeitinho meigo e saiu na sua tentativa frustrada de correr quando papai a chamou.

Era ruim vê-la correndo, pois na verdade ela simplesmente não era capaz de correr, qualquer um de seus esforços têm um limite. Sinto meu coração apertar quando vejo minha irmãzinha vendo outras crianças brincando e não poder fazer o mesmo, isso ocorre nas poucas vezes em que ela pode vir passar uns dois dias em casa.

A maior parte das bagagens já estão na nossa nova casa, agora é só colocar o que resta no carro e ir até o aeroporto, rumo à Miami. Já me despedi de tudo e todos, era hora de ir embora.

. . .

A poltrona de Sofi ficava ao lado da minha, que era na janela. A pequena dormia em meu ombro. Viajar de Albany à Geórgia de avião é super rápido, logo mais estaremos no nosso novo lar, que por sinal, eu não faço ideia de como seja. Grande ou pequeno, escuro ou claro. Ainda e surpresa.

Por mais que eu esteja acostumada com aqueles olhares de dó em cima da minha irmã, ainda é um saco ter que ver pessoas olhando para ela com os mesmos pensamentos inúteis e nada simpáticos de sempre, como "coitadinha, ela tem câncer" ou "deve ser horrível perder os cabelos assim tão jovem" e blá blá blá, é aquela baboseira. Alguns passageiros nas poltronas ao lado estavam olhando e cochichando, ignorantes! É sempre a mesma coisa e Sofia fica péssima quando nota alguém olhando estranho, que bom que adormeceu.

Uma aeromoça entrou na cabine anunciando que o avião estava prestes a pousar, todos checaram os cintos e eu precisei acordar a pequena ao lado. Ela abriu os olhinhos cansada e espreguiçou.

- Estamos chegando?

- Quase. Estamos chegando no aeroporto agora.

Fechei os olhos com força quando senti que o avião havia chegado na pista. Frio na barriga. Eu tenho medo de altura.

- Você está com medo, Kaki? - Sofia perguntou.

- Só um pouquinho.

- Eu não estou com medo. Se você quiser, pode segurar a minha mão e eu te protejo. - Ela disse e meu sorriso se fez no rosto. Seus gestos as vezes tão pequenos e irrelevantes valem por mil palavras. Tão pequena mas tão incrível!

Segurei a mão estendida pra mim e suspirei. Pude sentir a segurança que ela quis me passar.

. . .

Enfim em casa... digo, apartamento.

Terceiro andar, número dez. Esse é nosso novo lar. Quando entrei na sala, primeiro comodo, notei que estava tudo mobiliado, eram móveis bonitos e de madeira. À direita estava a cozinha, era pequena e aconchegante. Depois eu fui curiosa para o quarto, que seria divido com Sofi se ela ficasse aqui.

- Seu quarto foi decorado por mim mesmo, Karla. - Disse meu pai. - Espero que goste.

Ninguém melhor do que meu pai para saber o que me agrada, tenho certeza que vou gostar. Sorri para ele e abri a porta. Surpresa!

- Pai! - Exclamei - Ficou lindo!

O quarto era simples e simplicidade é algo que me agrada imensamente. Uma parede era cinza e as demais eram brancas, as camas ficavam uma do lado da outra e na parede da porta o guarda roupas. O cômodo tinha um ar mais adulto, diferente do meu antigo quarto.

Agora eu precisava por minhas coisas em ordem. E isso vai dar trabalho. Sofia iria dormir neste quarto só por duas noites e depois, o hospital se tornaria sua moradia. Desta vez, ela irá ficar numa sala com outras crianças da mesma idade, já que no outro eles dividiam as pessoas por estágios da doença. Minha irmã ficou feliz quando soube que teria amigos iguais a ela, e se minha pequena está feliz, isso já é o bastante... Falando em Sofi, ela apareceu no quarto um tempinho depois e se sentou na cama. Ela observava o que eu fazia.

- Kaki, você vai me visitar sempre no hospital novo? - Perguntou.

- Claro que vou, Sofi... Por que você está perguntando isso?

- Por nada. Só queria ter certeza mesmo. - Silêncio. - Você vai trabalhar todos os dias agora, não é?

- É. E eu vou poder comprar um livro novo para você todo mês!

- Você está falando sério?! - Exclamou.

- Estou falando seríssimo! O livro que você quiser todo final de mês.

- Então o primeiro que eu quero é O Pequeno Príncipe!

- Mas esse você já leu, não é? - Perguntei.

- Sim, mas eu quero ler de novo porque é muito legal... fora que eu adoro aquela raposa. - Assenti. Sofia ficou olhando todos os cantos do quarto até voltar a falar: - Além do livro, você pode me comprar um lenço azul?

- ...Posso sim, Sofi. Mas por que azul se você sempre gostou de rosa?

- Porque rosa é muito menininha, já chega.

- Realmente, rosa é muito menininha... e você não é menininha.

- Ei! É claro que eu sou, mas não de ser criancinha, né?

Mamãe apareceu na porta e chamou Sofia, a pequena se levantou de pressa mas precisou parar e tomar de volta o ar, então se foi. Fiquei sozinha e aproveitei esse tempo para pensar nesta nova vida; fui até a janela e tive a vista da grande cidade. As estrelas que mal brilhavam no céu estavam em terra com aquela imensidão de luzes, era bonito, mas eu as prefiro no céu. Apoiei a cabeça no batente e refleti sobre quase tudo.

...Sabe, nem sempre as coisas convêm. A vida é em geral alegre, o que nos torna injustos em relação a ela é que a alegria não é sempre recordada. Não estou tentando dizer que estou triste ou que não dou valor aos poucos momentos felizes que tenho, esse é só meu modo de pensar... talvez seja esse o errado, mas me faz bem.

Eu busco entender o que não se explica. Tento ver solução mas tudo que consigo é o ar mais carregado. É tanta arbitrariedade que me sufoca! Estou falando da minha irmã. Ela mal viveu e já teve que aprender a carregar esse maldito câncer. Eu me pergunto quase todos os dias "mas porque ela?". Minha dor é psicológica, a dela é real. O mundo é mutável, sempre injusto. É sujo e tem tudo para fazer alguém se render e chorar. E vivemos disso, sem exceções.

Live And Let DieOnde as histórias ganham vida. Descobre agora