Ep. 17 - Entrelaçadas

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Anita foi despertando aos poucos, seus sentidos pouco a pouco se ativando; abriu os olhos, piscando algumas vezes enquanto a claridade do quarto adentrava em suas pálpebras. Ela respirou fundo, deixando o ar novo da manhã entrar em suas narinas, enquanto apertava mais os braços ao redor do corpo que repousava em seu peito.

Ela acordara abraçada com Verônica, que descansava pacificamente em seu peito, envolvida em seu abraço. Anita não se alarmou ao acordar assim, pois lembrava-se com clareza do momento durante a noite em que a escrivã acordara assustada com mais um pesadelo com Lila, e a delegada logo a amparou com seu abraço. Dormiram o resto da noite assim.

Anita se deu um tempo para sentir aquele peso em seu corpo, peso que para ela nada pesava; a presença de Verônica em seu abraço parecia lhe fazer flutuar. Ela ficou um tempo de olhos fechados, sentindo o perfume da escrivã, sentindo sua presença, aproveitando pelo menos o pouco de paz que conseguira dar para Verônica.

Quando olhou para baixo, encontrando as raízes negras tingidas de loiras da escrivã, sentiu um impulso, uma vontade repentina dentro de si de beijar aqueles cabelos; depositar um beijo terno na cabeça daquela pessoa que tanto necessitava de tranquilidade e paz.

Mas não foi isso que fez; ao invés disso, se desvencilhou aos poucos e com cuidado do corpo de Verônica, levantando da cama com a maior cautela possível. Ela parou na escrivaninha do quarto, que tinha um modesto espelho sobre si. Olhou para o reflexo que a encarava de volta.

Não reconhecia aquela mulher que via.

Lembrava-se muito bem de quando conhecera Verônica pela primeira vez. Ela já era escrivã na delegacia de homicídios, e Anita havia acabado de chegar como delegada. Quando a viu, a única impressão que tivera foi a que ela era uma mulher bastante bonita e aparentemente solícita, já que foi bastante educada com Anita quando a conheceu. Mas então, ela se apresentou: Verônica Torres. Ela era filha de quem era.

A partir daí, Anita já não tinha a escrivã em muita alta estima; mas tudo piorou conforme seus embates ideológicos se travavam cada vez mais. Era impossível conseguirem trabalhar juntas. O problema da delegada com a escrivã não era mais apenas pelo seu passado, mas passou a ser pela pessoa que ela era.

E agora, elas estavam dividindo a mesma cama em um abraço que serviu para acalentar as duas.

Quando foi que essa evolução que a desorientava tanto começou a acontecer?

Hoje, Anita se preocupava genuinamente com os filhos de Verônica; ela se preocupava com a segurança e paz da escrivã, com seu bem estar. Pensava nela o dia inteiro, desde coisas banais a coisas sérias. Era ela a quem procurava quando sentia medo - aliás, era ela a única pessoa a quem admitia sentir medo.

Ela se lembrava com clareza de como o orfanato fazia de tudo para que eles não "amolecessem"; e Anita seguiu isso muito bem. Nada, absolutamente nada, nem ninguém, poderia desvia-la de seu propósito lá dentro. Nada poderia tirar seu foco. Nada poderia adentrar um coração que há muito fora endurecido pelo tempo e pelas crueldades que a vida separou especialmente para ele.

Mas então, chegou Verônica.

Chegou Verônica, invadindo sua casa e apoiando a ideia de Anita se redimir; chegou Verônica, a primeira pessoa que, mesmo com tudo envolvido, olhou fundo nos olhos de Anita e disse: "você é a vítima disso tudo. Vamos mudar isso?"; chegou Verônica, que, apesar de tudo, fazia tantas coisas, pequenas e grandes, todos os dias, para mostrar a Anita que ela não era escrava de seu passado.

Pela primeira vez na vida, a delegada sentia uma gratidão sincera por alguém; não gratidão por dívida, mas gratidão por gratidão.

Isso tudo era muito novo para Anita, e, de certa forma, a assustava. Muito. Nunca gostou do desconhecido, gostava de ter controle sobre tudo, precisava disso para se sentir segura; mas agora, estava vulnerável. Por exemplo, sempre achara Verônica atraente, desde o primeiro dia, mas Verônica não lhe era nada; nunca significou nada. Agora, já não era mais assim. E ela não sabia o que fazer.

FaíscasWhere stories live. Discover now