Ep. 02 - Anita

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Verônica estava deitada na poltrona para acompanhantes que ficava ao lado da cama do paciente, com os pés apoiados no braço da poltrona, vasculhando os desenhos que estavam na caixa de Matias; eram desenhos muito similares aos desenhos que Janete encontrara no sítio de Brandão, com demonstrações de um menino deixando a terra natal em um ônibus, além de sua cabeça estar coberta por uma caixa semelhante a que prendia Janete. Seria um ritual que os irmãos passaram na infância e passaram a replicar? Qual a ligação entre eles? Quem era o terceiro irmão?

A escrivã ergueu os olhos dos papéis para a mulher deitada na cama de hospital. Anita, que sempre tinha uma expressão dura e implacável no rosto, agora estava como se dormisse. Relaxada e em paz. Os cabelos loiros repousavam pacificamente pelo travesseiro branco, os olhos claros escondidos por trás das pálpebras fechadas. Verônica respirou fundo. Precisava, precisava que a delegada acordasse.

Ela pegou seu celular e começou a ver, obsessivamente - o que havia se tornado um hábito - o que a internet dizia sobre o caso de Matias. Ângela e Gisele continuavam se negando a dar entrevistas, e a insistência da imprensa enchia Verônica de raiva. Com tudo que essas duas tinham passado, o caos que engolia suas cabeças no momento, quando tudo o que elas mereciam e queriam era paz, deviam deixar que elas seguissem suas vidas, da maneira que fosse possível. Elas mereciam virar essa página.

Outra coisa que também incomodava Verônica profudamente era a imagem que a mídia pintou dela, como alguém extremamente controverso. Questionavam até que ponto ia a sua integridade. Denunciou um esquema de corrupção perigosíssimo e sem precedentes, mas matara uma mulher - até onde se sabe. Vendia-se desde sempre como uma aliada de mulheres em situações de abuso, mas demonstrava descontrole emocional e vinha de uma família disfuncional. Sobrava até para seus filhos. Ela os abandonara? Tentara protegê-los? Qual era a versão verdadeira?

Seu ego ou sua moral não se abalavam: ela sabia exatamente tudo o que havia feito e o porquê de tê-lo feito. Sabia o que perdera, o que arriscara, o que sofrera. Sabia onde morava seu coração. Mas saber que essas coisas chegavam em Lila e em Rafa, nas pessoas que conviviam com eles... Isso a matava.

Mas, de longe, o que mais enchia seu peito de ódio era a postura de Matias. Encarcerado em prisão domiciliar, o processo judicial ainda corria, e ele e seu advogado continuavam tentando vender sua versão de inocência, como se ele fosse um santo. Era tudo uma conspiração de uma mulher louca que não tinha Deus no coração e fazia de tudo para derrubar um homem cheio do Espírito Santo; que corrompera mulheres frágeis e raivosas. Que ameaçava sua família para inventar mentiras. As evidências em áudios e fotos? Forjadas, adulteradas, armadas. Cínico.

Verônica fechou todas as notícias e discou o número do celular descartável que dera para Paulo. Ele atendeu no quarto toque.

- Oi.

Ele não falara seu nome, e sua resposta havia sido curta. Isso significava que ele não estava sozinho.

- Oi, Paulo. Como vocês estão? Como estão as crianças?

- Tudo bem. Estamos aqui no aniversário do Léo. Rafa tá muito feliz.

Verônica sorriu, o coração se aquecendo ao ver como os filhos estavam tendo ao menos um pouco de normalidade na vida, ao ver que Rafa estava vivendo um início de fase tão gostoso na vida, ao ver que ele se sentia bem sendo quem era e amando quem amava com a família. Entretanto, seu peito sentiu uma pontada de dor por não poder estar lá nesse começo de ciclo.

- Que legal. Imagino que esteja ruim de você falar agora, já que está em público...

- Não, quer dizer, sim, não é o ideal. - Interrompeu Paulo - Mas pode falar. Tá tudo bem? Precisa de alguma coisa?

Depois de passadas as mágoas pelas mentiras de Verônica e incompreensão de Paulo, a relação dos dois estava muito mais cordial agora. Nunca voltaria a ser o que fora quando casados, mas ao menos agora podiam ser parceiros como pais de seus filhos.

- Não, tá tudo bem. Só queria saber de vocês mesmo, ouvir a voz de vocês. - Ela suspirou, querendo morrer de tanta saudade dos filhos - Diz pra eles que eu os amo muito, muito tá? Que eu tô morrendo de saudade. Que tô fazendo de tudo pra voltar pra eles. Que eles curtam muito a festa. Que...

- Verô. - Ele falou, a voz calma - Vou dizer tudo isso, sim. Mas eles sabem disso tudo. Garanto.

Verônica sentiu vontade de chorar. Constantemente se enchia de desespero ao pensar que seus filhos poderiam guardar alguma mágoa ou não terem noção da completa devoção que sentia por eles. 

- Tá bom. - Disse ela, com a voz trêmula, mas logo retomando o controle - Boa festa aí.

E desliga.

Ela olhou para Anita, ainda desacordada. Se levantou e se aproximou da delegada, segurando forte seu braço. 

- Acorda, Anita. - Sussurrou - Por favor, acorda. Eu preciso que você acorde.

-- # --

Verônica abriu a porta estreita e que sempre rangia quando abria - o que já estava enchendo o saco dela - do apartamento surrado que estava ficando por enquanto. Era um lugar de dois cômodos, uma sala que servia de quarto/cozinha e um banheiro pequeno. Verônica dormia no sofá duro e desorganizado, então não tinha uma boa noite de sono tem uns dias - não que ela conseguisse ter alguma desde que tudo começou. Ela encarou a parede que ficava diante do sofá, aonde instituiu seu quadro de pistas: os desenhos, as fotos dos envolvidos, as provas que tinha, toda a sua investigação até o momento. Todos os pontos ligavam em uma única questão, uma única pergunta: quem era o terceiro irmão?

Para tentar absorver as informações e abstrair a mente, ela pegou o que se tornara seu melhor amigos nesses tempos de solidão: o saco de pancadas que usava para treinar boxe. Trajando suas luvas e olhando fixamente para frente, ela começou a desferir socos, tentando organizar os pensamentos. 

Há tanto tempo, tempo que nem lhe fazia mais sentido na cabeça, ela deixara tudo o que conhecia para trás para tentar lutar contra a injustiça, o abuso, o absurdo; e, quando o fez, acabou por se enfiar em uma sufocante situação como nunca imaginara. Deixara seus filhos, que eram a sua vida, o seu ar, todo o seu coração, na esperança de dar a outras mulheres a oportunidade de terem uma vida boa como a que ela tinha. Morrera, de novo, e de novo, e de novo, para que outras pudessem viver. E falhara. E conseguira. E assim permanecia.

Frustrada, Verônica jogou as luvas no chão. Foi para o banheiro estreito e sujo para tomar um banho frio e se preparar para dormir e recomeçar o dia seguinte como todos os outros anteriores.

Porém, sem seu conhecimento, há vários metros dali, olhos claros se abriam em uma cama de hospital, reganhando vida.

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