00. Prólogo III - O parto

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Ela não tirava o pé do acelerador, mas cada vez mais ia perdendo a força nas pernas. Os carros que passavam na mão oposta da rodovia iluminavam seu rosto que ia aos poucos demonstrando cada vez mais sua dor. Olhava também pelo espelho interno para ver sua maior preciosidade, seu filho de dois meses que estava bem seguro ao lado de sua mentora no banco de trás. Evitava de olhar para o acostamento da rodovia, pois aqueles que ali estavam poderiam a distrair com seus lamentos e feições. Sua intenção era chegar em Fortaleza o mais rápido possível.

- Você poderia parar em Pacajus e ir a um hospital logo, vai acabar morrendo desse jeito, não aguento mais te ver assim. - Disse a mentora no banco de trás.

- Não posso perder nem um minuto antes de chegar em casa. - Ela falou sentindo suas mãos fraquejarem. Sua camisa já estava ensopada de sangue e o banco do motorista as vezes escorregava de tão liso. - Eu já estou perto de mais pra deixá-lo me alcançar. - Ela falou olhando para o filho que dormia inocente.

- Ligue para seu pai de Horizonte então, ele chegará em minutos, eu sei disso. - Falou a mentora a olhando pelo espelho interno com uma expressão de pena.

- Aquele homem vai me alcançar se desacelerar por um segundo, não posso deixá-lo chegar um centímetro mais perto do meu filho. - Ela disse com lágrimas escorrendo do seu rosto. - Não me olhe com essa cara, sabe que eu detesto que sintam pena de mim. - Disse a garota limpando o rosto com uma das mãos.

- Gil... - A mentora ia começar a falar, mas o carro acabou indo para a outra pista e quase bateu de frente com outro. - Você vai acabar se matando. - Disse a mentora.

- Você não viu tudo que eu passei naquele lugar. Se ele me pegar novamente, a morte vai parecer um belo convite. - Disse a garota recuperando a força das mãos. - Todo dia ele tirava litros e litros de sangue do meu corpo, me deixando fraca demais para reagir, mas viva o suficiente para me torturar. - Disse Gil deixando as lágrimas explodirem em seus olhos. - Eu não vou permitir que ele faça algo assim com meu filho, nem que para isso eu tenha que dar fim as nossas vidas. - Disse ela com um dor forte no coração.

As luzes de casas passavam como estrelas cadentes na beira da estrada e rostos atentos observavam o carro que cortava a rodovia e ziguezagueava para ultrapassar os outros.

- Eu lembro que algo que sempre me admirou em você foi a sua determinação, mesmo que as vezes sua coragem fosse tola. - Disse a mentora com um sorriso nostálgico. - Lembro de como as vezes você enfrentava seu pai e não se deixava dobrar nem pela postura imponente daquele homem de 1 metro e 80 e nem pela voz repreensiva da sua mãe. - Completou a senhora sorridente.

- E a senhora sempre com aquele ar desesperado e apaziguador. - Gil quis sorrir, mas a dor no abdômen a impediu. - O que eu fiz para merecer tudo isso, tia Bruna? - Perguntou a garota enquanto sua visão embaçava. Ela limpou as lágrimas achando que poderia ser isso, mas sabia que não era.

- Você fez tudo que pode, querida, mas nada para merecer sofre. - Disse a mulher com um olhar meigo. - Você não precisa ser convencida de nada, apenas se perceber em meio ao caos. - Disse a senhora com um meio sorriso pelo espelho. Gil lembrava daquela frase.

Seis anos antes quando todos a consideravam louca por ver aquilo que "não devia". Naquele momento Gil só desejava estar realmente louca e que remédios a fizessem parar de ver pessoas estranhas e conhecidas já falecidas do lado de sua cama e outras coisas assustadoras que a faziam gritar por sua mãe e seu pai no meio da noite. Ela não tinha medo até todos apontarem que ela já estava grande demais para mentir daquele jeito. Gil era louca ou mentirosa e ela não queria ser vista por todos como uma mentirosa então acreditava que estava louca. Sua mãe dizia que com terapia ela pararia de dizer que via aquelas coisas e seu pai queriam que os remédios a parassem de ver coisas que não existiam. Com dez anos, Gil sentia medo de si mesma, naquela idade ela não confiava em si, afinal se sua própria cabeça a enganava imagina só as mentiras que ela poderia inventar para as outras pessoas.

Um dia, Gil viu uma menina toda machucada chorando no corredor da sua casa e quando se aproximou, tocou o ombro da menina e viu que ela não tinha olhos quando seu rosto virou. A garota correu desesperada chorando pela casa e só parou quando abraçou tia Bruna que estava ali de visita. Tia Bruna era irmã da sua mãe, psicóloga aposentada convenceu a irmã a pôr Gil em uma terapia em vez de castigos e punições como o cunhado queria.

- O que houve, querida? - Perguntou Bruna no dia, testemunhando pela primeira vez uma crise de Gil.

- Tia, por favor eu peço pra senhora, eu suplico pra senhora! - Se ajoelhou Gil entre soluços. - Me convence que eu estou louca, me convence que nada disso é real. Eu não quero mais ser chamada de mentirosa, eu não estou mentindo. Me dá qualquer remédio pra que isso acabe, eu não aguento mais tia! - Disse a criança em crise, se tremendo.

Tia Bruna se ajoelhou na frente de Gil e disse a mesma frase que agora falava no banco traseiro do carro.

- Você não precisa ser convencida de nada, apenas se perceber em meio ao caos. Não precisa provar nada a ninguém, só estar tranquila com sua verdade. - Tia Bruna abraçou Gil naquele momento, tentando acalmar a garota que tremia. Talvez não fossem as palavras certas, mas foram as necessárias para ela ali.

Agora, seis anos depois, a visão de Gil se embaçava ainda mais, seu corpo tremia, suas mãos fraquejavam e sua dor só aumentava. O volante pesava e estava a pouco de perder o controle da perna que apertava o acelerador. A garota olhou seu filho pelo espelho uma última vez e sorriu. O pequeno garotinho dormia tranquilo e isso fez seu coração se aquecer.

- Tia Bruna, eu só queria que nada acontecesse ao meu pequeno. - Falou ela sentindo o carro já dançar na pista.

- Nada acontecerá com ele, essa será minha última promessa. - Disse Bruna já prevendo o que estava prestes a acontecer.

- Espero que ele cresça sabendo que eu tentei. - Falou Gil perdendo a força dos braços, mas antes de entrar com tudo dentro de uma casa na beira da rodovia, ela conseguiu desviar em direção a uma árvore. Gil viu um clarão emanar de dentro da casa e na hora que seu corpo foi jogado para frente com a batida do carro no tronco de madeira, ela escutou o choro de um bebê. 

Tulipa: Desabrochar.Onde as histórias ganham vida. Descobre agora