00. Prólogo II - Convocação

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Mesmo com minha cadeira posicionada estrategicamente onde o ar-condicionado bate mais forte, um calor insuportável percorreu meu corpo. Eu sabia o que significava. "Você vai saber quando acontecer" foram as suas palavras quando me viu em prantos desesperada.

Naquela tarde, a escola estava quieta, o que era atípico. Desde a hora do almoço a realidade ao meu redor parecia flutuar. Infelizmente, eu sabia desde muito nova separar o delírio da realidade, perceber a verdade e desmascarar a mentira. Tudo ao meu redor era real, mas parecia que algo estava incomodando a realidade. E eu soube o que era no momento que a minha porta abriu. A senhora elegante entrou na sala da coordenação como se tudo ali fosse dela. Sem anunciar com batidas na porta e nem perguntar se podia entrar, só chegou.

- Você sabe que eu nunca gostei dessa escola. - Ela disse sentando na cadeira a minha frente. - Falta mais vida nela. - Ela disse me encarando ao tirar os óculos escuros. Olhou toda a sala com desdém e nojo. Sabia que aquilo era para me irritar.

- Você nunca gostou de nenhuma escola que trabalhei. - Eu disse a encarando tirando meus óculos de grau.

- Nem você, por isso nunca durou muito em nenhuma delas. - Disse a senhora com ar de superioridade.

- Muitas vezes eu não vou estar onde quero, mas onde sou necessária. - Eu disse com o mesmo ar de superioridade.

- E você sabe onde é extremamente necessária. - Ela disse mudando o tom. Agora demonstrava todo o seu lado meigo.

- A senhora sabe meus motivos para não estar naquele local, vai além de ser necessária ou não. - Eu disse desviando o olhar dela. - Eu não quero esse caminho. Desisti. Não vou voltar. - Falei convicta, mas com as palavras travando na garganta. Amargura, tristeza, rancor, medo, ódio, raiva, sentia um misto de sentimentos ao relembrar esses motivos.

- Com ele vai vencer. - Disse ela suplicante.

- Isso não é um jogo. E se fosse ele já ganhou. - Fui enfática. - Ele sempre ganhou e sempre vai ganhar. Nunca houve nem chame de derrota para ele. - Continuei exaltada.

- Aquela garota conseguiu vencê-lo. - Ela disse calma.

- Antes ou depois de ser esmagada dentro daquele carro? - Eu disse e depois me arrependi. - Desculpe, não deveria ter me exaltado. - Disse deixando uma lágrima escorrer.

- Eu sei que ainda dói. Não precisa fingir. Me desculpe, eu deveria estar mais presente em toda aquela situação. - Disse ela com verdadeiro arrependimento.

- Eu não vou ceder dessa vez. Já houve mortes demais da última vez. Não quero um caminho de batalhas. - Disse deixando mais lágrima caírem.

- Eu só quero alguém que os proteja e você é a única que confio para isso. Sei que errei muito e por conta dos meus erros fiz você perder quase toda a esperança, mas também sei que você guarda trancada abaixo de toda essa certeza o último fio de esperança. - Ela falou pegando minhas mãos.

- Até você pode errar, mãe. - Eu disse, lhe olhando nos olhos.

- Ainda há uma chance, mas essa chance passa por você sendo a minha substituta. Veja se estou mentindo. - Disse ela tentando me convencer.

- Eu não faço mais isso, já disse diversas vezes que desisti desse caminho. - Foi incisiva. - A senhora deveria pelo menos agora respeitar isso. - Eu disse com lágrimas nos olhos.

- Eu sempre respeitei, Magnólia. Sempre quis te ver feliz, filha. - Disse ela falou meu nome horroroso e eu fiz uma careta. - Essa sua birra com o nome me lembra quando você queria tampar minha boca perto das suas amiguinhas. - Ela gargalhou e eu estava com tanta saudade daquela gargalhada que esqueci completamente das minhas barreiras.

- E a senhora insistia em falar mesmo assim. - Falei rindo também com uma sensação ótima pulsando no peito. Era saudade. Já era saudade. E eu chorei. - E agora o que eu faço com o medo, mãe? - Disse baixando a cabeça e começando a chorar.

- Mesmo agora eu não sei, Amor. - Ela me disse se aproximando e tocando com a mão meu queixo. Ela sempre fazia isso. - Em vários momentos eu só tive o medo como companheiro, mas nunca fiz dele, meu único conselheiro. - Ela levantou minha cabeça e vi seu sorriso como o primeiro raio de Sol após uma noite de tempestade.

- A senhora sabe que eu desisti por que não tenho capacidade para tamanha responsabilidade. - Disse sincera sem desviar o olhar do seu. - A senhora fez a sua vida, já eu tornaria um fardo. - Peguei sua mão. - Por que não convocou Lírio? Ele sim levaria isso como um devido mestre. - Meu irmão Lírio com certeza aceitaria na hora assumir o lugar de mamãe.

- Você é a única que pode assumir, Lírio também concorda. - Ela disse sem dar para trás.

- Até mesmo agora você continua cabeça dura dona Melissa. - Eu disse dando uma risada.

- Foi uma das minhas melhores qualidades que você herdou. - Disse ela orgulhosa. - Preciso ir agora. - Ela falou me olhando gentil. - Você é extremamente necessária agora e será ainda mais em um futuro próximo. - Ela falou levando e colocando sobre minha mesa uma flor.

- Não sabia que a senhora gostava de tulipas. - Disse curiosa. Eu não gostava de flores cortadas.

- Sei que você não gosta de flores assim. - Ela disse com indo para a porta e parando com a mão na maçaneta.

- Elas parecem entregues a morte. - Disse tentando gravar o máximo da sua presença naquele momento.

- Não deixa a tulipa morrer. - Ela disse virando a maçaneta e bastante séria e eu olhei para a flor sobre minha mesa. - Outra coisa, diga para Lírio que ele compra uma roupa nova para a cerimônia! - Ela disse alto e um pouco irritada, eu ri. - Eu sempre falei que queria roupas novas na minha cerimônia. Estou começando uma nova etapa e quero que isso seja representado ao menos assim. - Completou furiosa. - Agora vou embora, querida. - Ela falou na mais extrema calma abrindo a porta e saindo.

- Tchau, mãe! - Abaixei a cabeça e chorei.

Devo ter passado alguns minutos encarando a parede a minha frente e chorando. Só sai desse estado de quase transe quando alguém bateu na minha porta novamente.

- Pode entrar! - Falei limpando os olhos. Era Lírio, meu irmão. Ele estava sério e sentou na minha frente.

- Você já deve imaginar o motivo da minha visita. - Ele sorriu sem graça e segurou o choro.

- Só mamãe faria você viajar mais de 300km. - Eu disse com o mesmo sorriso sem graça.

- Eu preferi vir te contar pessoalmente. - Ele falou começando a chorar. - Talvez por que eu precisava mais de você do que você de mim. - Ele disse levando as mãos ao rosto. Eu levantei e fui até ele. Abracei meu irmão.

- Me desculpe por não estar lá. - Disse realmente arrependida.

- Tudo bem, eu não te culpo de nada, Magna. - Ele disse me olhando mais calmo. - Ela morreu calma e sem dor, isso me conforta, pois a fase terminal foi dolorida, não conseguia mais ver tanto o seu sorriso. - Disse ele triste. - O que me dói é saber que você não conseguiu se despedir dela. - Ele me olhou triste.

- Não se preocupe. Eu me despedi. - Disse olhando a flor e meu irmão percebeu.

- Pensava que você não gostava de flores cortadas. - Ele disse sem entender.

- Não gosto, inclusive essa não posso deixar morrer. - O que era inevitável, mas minha mãe cabeça dura teve esse último desejo. - Mas antes precisamos comprar roupas novas. - Disse e ele levantou rápido da cadeira.

- Ela ficaria furiosa se não cumpríssemos esse desejo dela. - Disse Lírio com um sorriso nostálgico.

- Você nem imagina quanto... 

Tulipa: Desabrochar.Where stories live. Discover now