15: O Mapa em Vermelho

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Boa parte da vida da minha genitora era um borrão indefinível não apenas para mim, como também para todos os que a conheceram

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Boa parte da vida da minha genitora era um borrão indefinível não apenas para mim, como também para todos os que a conheceram.

Júlia, sua irmã, ficou anos morando em outro estado nos tempos de ouro da minha mãe, os quais passaram sem muito contato. Meu pai só entrou na história da sua vida pouco tempo antes dela falecer me dando a luz, e a mulher sempre foi extremamente reservada com todas as outras pessoas que compunham seu universo e também faziam parte do meu.

Tudo o que ela deixara no mundo, além das flores que caíram do seu coração no percurso da existência, cabia dentro de uma caixa no depósito desgastado da tia Júlia e no espaço ínfimo de alguns fatos desbotados ao seu respeito que me foram contados, como o de que, além de atuar em filmes, também tocava piano de cauda como ninguém, escrevia roteiros e desenhava coisas incríveis.

Ela foi grande; disso eu tinha certeza. Tão imensa quanto a estrela mais reluzente do cosmos, porém instável como um buraco branco seria caso existisse.

Minha mãe foi um pequeno enigma que ninguém parecia disposto a desvendar além de mim, desde quando tomei consciência do fato de que era sua filha.

Fora esse pensamento que deu combustível para minhas pernas deslizarem os patins o mais rápido possível ao longo das ruas asfaltadas à caminho da Relicário. O dia estava prestes a se esconder no ocaso cor de cobre do horizonte em que as nuvens nadavam, desmanchando-se em porções de espuma cintilante nos poucos vislumbres de amarelo e laranja do crepúsculo.

A porta da loja de antiguidades rangeu um pouco quando entrei, meus pés descalços tocando o piso de cerâmicas estampadas em tons de marrom terroso e a palma direita fixa nas bordas dos meus patins para não caírem. A luz oleosa das lâmpadas retrocessas penduradas nas paredes se derramou nos meus poros, banhando-me de amarelo cintilante durante todo o percurso que fiz por entre as prateleiras até o balcão. Minha tia estava atrás do móvel, terminando de atender um rapaz que empunhava um clássico toca-fitas.

Assim que efetuou o pagamento, ele passou por nós e seguiu rumo à porta.

Migrei a atenção para Júlia, contemplando os fios afogueados do seu cabelo perfeitamente ajustados sobre os ombros e a constelação de sardas tracejadas ao longo das bochechas rechonchudas. Ela, por sua vez, não falou nada, apenas se abaixou para capturar alguma coisa refugiada próxima aos seus pés.

— Um amigo de infância meu e da sua mãe deixou aqui. O Pedro. Disse que estava empacotando as coisas para se mudar amanhã e encontrou isso no meio de alguns trambolhos.

— E era... tudo dela? — minha voz saiu estranhamente miúda.

— Pelo que o Pedro disse, todas as coisas eram dela, sim. — Torceu os lábios. — Provavelmente, Juliana as adquiriu durante os anos em que fiquei fora da cidade. Acho que você deve ficar com elas.

Capturei o retângulo de papelão com certa dificuldade, equilibrando-o no meu antebraço livre. Uma curiosidade inédita fervilhava em minhas veias, mesclada a um fervor de empolgação que disseminou fios elétricos no meu estômago.

O Fantástico Mundo de Romeu e JulietaWhere stories live. Discover now